Todo o dia de ir ao Centro Cultural é sempre igual, demoro muito e saio sempre correndo. Naquela quinta, havia acordado prometendo que não iria me atrasar, mas não deu outra. Ao descer a famosa “rua da zona”, vi sem querer aquela plaquinha discreta, numa casinha singela, típica do centro histórico de São João del-Rei. A singeleza, porém, fica por conta da aparência, a história ali é outra: nessa casa, recordo direitinho da fachada, já funcionou a “Boate Ormezinda”. Boate, há muito e muito tempo, era o codinome de casa de prostituição.

Chego bem na porta e leio: “Cerem – Centro de Referência Musicológica de Minas Gerais”. Referência musicológica, o que será isso? Mais embaixo, vislumbro um certo entendimento. Mas, depois a dúvida aumenta: “Museu da Música”. Afinal? Tive que entrar. Mauro é quem me recebe de braços abertos e se oferece para apresentar o lugar. De cara, vai confirmando que a casa era mesmo de Ormezinda. Contudo,  daquela época só restou a fachada, que foi mantida. Foi uma casa literalmente construída, diz ele, recebida como um presente. A antiga foi jogada praticamente ao chão, em 2004, e reconstruída com parte da herança de José Maria Neves e com recursos cedidos pela Copasa por meio de lei de incentivo. O custeio operacional e de funcionários veio de recursos doados pela família de Aécio Neves e a responsabilidade na gestão ficou por conta da UFSJ, através de uma parceria institucional.

Curioso, quero saber mais sobre quem foi José Maria Neves. Descubro ter sido ele um músico são-joanense de renome internacional, mulato como a maioria dos membros das orquestras, com passagem pela UniRio e doutorado sobre música contemporânea brasileira na Sorbonne, em Paris, falecido em 2002. Meu guia  aponta para uma escada interna, com acesso limitado naquele momento. Leva a um andar superior dedicado ao músico, com toda a sua correspondência, sendo que já foram traduzidas do francês 72 cartas para recompor a trajetória de José Maria. Ouço de Mauro a explicação: o departamento de música da universidade quer tentar elaborar uma história – nem que seja jornalística, porque sob o ponto de vista da música, São João tem essa grande dívida a pagar.

A primeira porta à esquerda dá para a Sala de Referência. Senti o primeiro golpe da proposta histórica. Reunidas ali, de forma despretensiosa, partituras originais de gente muito importante: Antônio dos Santos Cunha, Virginiano Ribeiro Passos e Presciliano José da Silva.

Há um documento de 1815, no qual se descreve a herança de uma pessoa, em pormenores: “deixa tantas galinhas, tantos ovos, um gato, etc. e uma viola ‘cá feita’”. Preciosidades, um violoncelo, um contrabaixo e um violão de José Maria embelezam o local, doados pela família. Descubro, entretanto, que o bandolim não é dele, é italiano.

Uma bancada com ferramentas antigas me faz viajar no tempo e visualizar ali um artista construindo instrumentos musicais. Desperto do transe com a voz do meu guia que, empolgado, conta que São João chegou ao século XIX com duas orquestras funcionando há algumas décadas, Lira Sanjoanense, a mais antiga, fundada em 1776 e a Ribeiro Bastos, criada em 1790. Ele garante que são as duas mais antigas das Américas em atividade ininterrupta nas Américas e voltadas à música litúrgica.

Diz que mais adiante vou conhecer a “árvore histórica”. Uma obra de arte cujas “folhas” datam de 1717 e mostram quem foram os pioneiros que lidaram com música erudita em São João, nos séculos XVIII, XIX e XX, entre eles Lourenço Fernandes, Antônio do Santos Cunha, o Pe. José Maria Xavier e Presciliano Silva, compositor cujo acervo completo o Cerem ganhou há cerca de 15 dias e que ainda vai chegar.

Entramos casa adentro e nos deparamos com uma imensa biblioteca de partituras. Mentalizo serem de uma riqueza fora do comum, depois de tudo o que já ouvi e vi. Sem me dar tempo para questionar, Mauro me surpreende “aqui existem cerca de 2.200 livros sobre música”. Aprendo que esse acervo pertenceu a um camarada apaixonado por Tchaikovsky, 22 biografias catalogadas comprovam o fato. Comento, espantado, sobre as várias obras sobre ópera, como Verdi, e Mauro explica que é uma casa para pesquisadores, por isso a denominação “referência musicológica”. A edificação ainda dispõe de apartamento para hospedagem e uma sala com piano, computador e outras facilidades, além de uma coleção de LPs, os antigos vinis, com cerca de cinco mil discos.

Olho para o relógio e congelo até os ossos de apreensão. Agradeço ao Mauro pela experiência, digo a ele (e a mim mesmo) que voltarei em breve para apreciar a “árvore”. Piso na rua como se tivesse voltado de uma viagem sem ter saído do lugar e penso em como São João é uma joia preciosa.

 

Texto/VAN: Brenda Guerra, Caio Cézar, Jhonatan Braga, Lorene Souza,  Luciano Nascimento, Rodolfo Silva + Lucas Guimarães e Karoline Alice*

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