Como vários mineiros, de várias gerações, ele não fixou paragem, a não ser em suas memórias. Do interior das montanhas para o resto do mundo, soube articular como ninguém o sotaque da mineiridade com o vocabulário cosmopolita dos sujeitos clivados pela chamada pós-modernidade. Regionalista universal, Otto Lara Resende ocupa a liminaridade, o espaço e o tempo do entre.

“Sou imóvel e semovente”. A frase de
Otto Lara Resende, publicada no livro “Três Ottos por Otto Lara Resende”
(2002), marca bem o espírito cigano, errante que “os infinitos Ottos”,
expressão cunhada pelo jornalista Matinas Suzuki Jr., trilharam ao longo de
seus 70 anos de vida.
                Caleidoscópico,
multiforme, multifocal, sua alma afligida por uma ambivalência sem fim foi um
dos grandes conflitos que perturbou o homem que, apesar de fixado nas Letras
Jornalísticas, sonhou em ser aviador, diretor de banco, advogado, professor e
tantas outras coisas que cabem numa mente demasiado inquieta.   
                Junto
do amigo Paulo Mendes Campos, mais tarde uma espécie de alter Otto, já que
assinaram artigos juntos com os pseudônimos de Otto Mendes e Paulo Lara, as
mirabolantes ideias dos colegas de infância beiravam o absurdo: “(…) Por
que  não aviador? Lá fomos nós estudar
inglês na avenida Brasil, ali pertinho da Praça da Liberdade, para o concurso
que nos levaria a ser pilotos, quem sabe pilotos de guerra”, revelou Otto em
crônica publicada dia 28 de fevereiro de 1992, no jornal Folha de S. Paulo.      
Eleito para a cadeira de
número 39 da ABL em 1979, 
Otto não se sentia nem um pouco à vontade 
com o
fardão da Academia
Mas, graças ao destino,
ou à providência, como preferiria Otto, sua missão foi mesmo despencar como
kamikaze nos jornais. Ele costumava dizer que entrou para o jornalismo como
cachorro entra na igreja. A porta estava aberta. Não por acaso seu pai,
católico fervoroso, era um dos diretores de O Diário, jornal da capital mineira
que Otto estreou com o artigo intitulado “Panelinhas Literárias”, no qual fez
uma defesa acalorada do escritor catolicista Tristão de Athayde, nome literário
adotado por Alceu Amoroso Lima. Mesmo ocupando cargos importantes nos maiores
jornais do país, Otto nunca se conformou com o fato de não ter exercido o
magistério de forma plena. As aulas de Língua Portuguesa e Francesa que chegou
a lecionar foram como uma nuvem passageira. Não chegou a fertilizar o solo de
experiências acumuladas durante sua existência: “A culpa de tudo foi sempre
minha. Professor: fui no ginásio, gostei muito. Sempre desconfiei que eu dava
bom professor, devia continuar. Vim pro Rio com essa intenção. Arranjei uma
carta do doutor Alceu tão elogiosa, para o São Bento, que fui adiando, não deu
para ir lá, era longe, eu trabalhava no Globo, no Diário de Notícias,
em tanto lugar, em tanto jornal, acabei deixando o magistério, retomei
episodicamente, sempre gostei”, desabafa Otto em entrevista concedia a Paulo
Mendes Campos, em abril de 1975.
O pobre menino do Matola
                Otto Lara Resende nasceu dia 1º de maio de 1922 na
Tradicional Família Mineira. Como costumava dizer, “era um pobre menino do
Matola”, bairro antigo de São João del-Rei. Dos 20 filhos que seus  pais tiveram, 14 vingaram, como  se diz ainda em Minas Gerais. 
“Sempre
desconfiei que  eu dava bom professor. 
Devia continuar”
                E, ao que tudo indica, o gosto
não realizado pelo magistério vem dessa época. Seu pai, antes de ser diretor de
jornal em Belo
Horizonte, era dono de um tradicional colégio são-joanense
que, se não era igual, inspirava-se no educandário do Caraça, região central de
Minas, que causava medo nas crianças pelas histórias de punição a que eram
submetidos os alunos.
              A influência do pai e o
encontro com o professor Benone Guimarães, ainda na escola primária, foi
decisivo na escolha de uma vida inteira dedicada ao beletrismo. Por esta época,
Otto conheceu os clássicos e rapidamente se apaixonou por Machado de Assis, Eça
de Queiroz e Agripino Grieco. Além das montanhas e dos dobres de sinos das
igrejas medievais que pesavam em sua alma infantil, a leitura prematura dos
cânones literários repercutiu diretamente em sua formação. “A descoberta de
Machado de Assis, de sua visão cética, amarga, de sua ironia, de seu sense
of humour
, desvendou um mundo para mim. Aos catorze, quinze anos, eu talvez
fosse mais amargo e mais pessimista do que o Machado (…)”, confessou Otto.
                Este espírito carregado pelos
fantasmas de sua infância é uma marca que biógrafos do jornalista passam
recibo. Segundo Benício Medeiros, em “Poeira da Glória”, “O universo temático
de Otto é o interior de Minas da sua infância, povoado de tédio, de culpa e de
cânticos à sombra e à luz de centenárias igrejas. Retratou com graça,
humanidade e economia de recursos o pedaço de um Brasil mítico onde os
personagens transitam entre a mentalidade de chã e a transcendência dourada do
barroco”.
                Mas ao lado deste Otto melancólico, conviveu o Otto
das tiradas inesperadas, o causeur mais concorrido entre os amigos. Não por
acaso Nelson Rodrigues, que escandalizou o jornalista com o título da peça
“Bonitinha, mas ordinária. Ou Otto Lara Resende”, é o autor de um dos aforismos
que melhor definem o escritor de “O Braço Direito”. “A grande obra de Otto Lara
Resende é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas
anotações em uma loja de frases”.
Sense of humour
               
O
lado “endiabrado” de Otto ficou evidente com sua mudança para Belo Horizonte,
em 1938, quando tinha 16 anos. Ao lado dos amigos Paulo Mendes Campos, Fernando
Sabino e Hélio Pellegrino, que o próprio Otto chamava de “Os quatro cavaleiros de
um íntimo apocalipse”, o que não faltavam eram peraltices na ainda provinciana
capital mineira. Em uma de suas célebres frases, autodefiniu-se como “uma alma
seriamente amolecada”. E foi com essas molecagens que agitou a juventude
belo-horizontina dos anos 1940. 
                “Os mais afoitos, além das farras ingênuas do Cabaré
da Olympia, aventuravam-se pela noite boêmia em rapaziadas que o anedotário da
época guardou até os nossos dias (e muitas, depois, seriam macaqueadas pela
minha geração, na década de 40): trocar o número das casas, arrancar as placas
de dentistas, médicos e advogados afixadas, como era hábito, no portão ou na porta
da rua, subir pelo arco do viaduto pela estrada de ferro, em busca de uma
vertigem que um descuido poderia transformar em acidente fatal, quase suicídio,
atear fogo na casa das namora- das rebeldes para depois, bombeiros voluntários,
ajudar a apagá-lo, tomar carraspanas homéricas que o silêncio frio das
madrugadas engolia e sepultava na indiferença, com um ou outro incidente
policial… Eram, no fundo, uns bons rapazes, filhos de famílias, na tentativa
mais ou menos vã de dar vazão a uma juventude inconformada com o estilo compassado e
sisudo da vida mineira, com o famoso ‘senso grave da ordem’ de nossa
imperturbável província”, queixou-se Otto.
E
o tamanho diminuto das Alterosas não comportava o afã revolucionário daqueles
jovens que sonhavam com a liberdade. Pouco a pouco, fizeram as malas e se
transferiram para o Rio de Janeiro em 1945, então capital do Brasil.

O mineiro flâneur
                Otto Lara Resende aterrissou em praias cariocas em
1945. Quando chegou, foi recebido pelos amigos Fernando Sabino, Paulo Mendes
Campos e Hélio Pellegrino, fixados por lá. Já no Rio, mal teve tempo para
respirar a maresia que inebriava seu horizonte aberto pelo mar sem fim.
Enfiou-se em redações de jornais como o Diário de Notícias, O Globo, Diário Carioca, Correio
da Manhã, Última Hora, Revista Manchete e TV Globo.
   Sua adaptação rápida levou Benício Medeiros a afirmar que
Otto Lara Resende se transformou no “mais carioca de todos os mineiros”. A
verdade contida na assertiva do biógrafo de Otto repousa naquilo que o filósofo
argelino radicado na França, Jacques Derrida, chama de “desconstrução”. Para
ele, os sujeitos não vivem o presente por completo, já que necessitam
deslocar-se entre tempos e espaços que fogem à presença para constituírem-se em
um ser significativo. A chamada différance, corruptela ortográfica do francês différence, é para Derrida aquilo
que não encontra uma resposta baseada em termos dicotômicos, como belo/feio,
mas por meio da possibilidade de se alinhavar o que está no meio, o
intermediário entre a pureza e a maldade, o espaço dos interstícios a que os
sujeitos são alvejados o tempo todo.
“O
pequeno mundo de Otto Lara Resende”, quadro que
o jornalista apresentou  no
“Jornal de Verdade”, da Rede Globo, 
ou
“Vênus Platinada”, como definiu Otto
                Otto pode ser considerado o
típico representante da différance derridiana. Isso porque, enquanto
sujeito carioca que escreve, praticamente psicografa o espírito mineiro que
insiste em possuir suas memórias. No trecho da crônica “Chegamos juntos ao mundo”,
publicada na Folha de S. Paulo dia 3 de julho de 1991, Otto se
desconstrói enquanto carioca para se tornar um mineiro assombrado pelas
lembranças escritas por Paulo Mendes Campos: “Ainda bem que nas crônicas e nos poemas do Paulo encontro a
nossa Belo Horizonte. E o adro da igreja de São Francisco de Assis. Em São João del Rei. Nosso
primeiro universo. Nossa pátria pequena, Minas”.  
                As
Alterosas já não estão mais materializadas, mas são vestígios da memória que
Otto precisa buscar fora de si para significar-se. Misturam-se as vozes do
mineiro, do carioca e do cidadão do mundo construindo um ser clivado, híbrido.
Eterno Exílio
Otto é o terceiro da esq. p/
dir.
Este ser que se despedaça
para recolher novamente os cacos que lhe constituem é justamente aquele que
habita a fronteira. Um eterno exilado que flutua por espaços descontínuos e por
tempos de espera, já que para ele o futuro deve se reencontrar com o passado e
o presente é apenas a travessia.
                
Otto e a futura esposa,
Helena
Pinheiro
Desde que desceu a montanha,
Otto estava certo da escolha que fez: “Quando cheguei ao Rio para viver, foi
uma opção definitiva”, garantiu na crônica “Sombra e água fresca”, da Folha
de S. Paulo
, dia 22 de dezembro de 1991. Mas escolhas permanentes nunca foram
duráveis na vida de Otto. Quando se mudou para Bruxelas, em 1957, também seria
para o resto da vida. “Por mim teria ficado na Europa, já tinha arranjado um
contrato na Unesco, estaria lá até hoje, se não fosse Helena, depois que eu
assinei, ela me olhou, percebeu que eu fazia uma opção para sempre, começou a
chorar e me pediu pra voltar, passei pelo vexame de voltar atrás, vim embora”,
confessou Otto. O mesmo aconteceu com Lisboa. A mudança vitalícia em 1967 durou
apenas dois anos.
Da esq. p/ dir: Fernando
Sabino, Hélio Pellegrino,
Otto e Paulo Mendes Campos:
“Os quatro cavaleiros de
um íntimo apocalipse
                Apesar de ter respondido mineiramente a um repórter
que “não merecia volta a Minas”, Otto nunca deixou de ser mineiro. Sua errância
não foi suficiente para apagar de sua memória sua terra natal. Come ele próprio
afirmou, “Quem quiser descrever o universo tem que falar de sua própria aldeia.
E minha alma é formada por sinos, igrejas barrocas e as imagens de infância em São João del-Rei”. Seu
eterno exílio cumpre-se na sepultura. Otto Lara Resende foi enterrado dia 28 de
dezembro de 1992 no Rio de Janeiro.

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