Escrito por: Lucas Guimarães

Revisado por: Samantha Souza

Erasmo Carlos
Erasmo Carlos, lendário nome da música brasilei, em 1970. Foto: José Santos, Agência O Globo

Gigante Gentil se explica pelos quase dois metros do carioca Erasmo Esteves, o Erasmo Carlos, que, humildemente, parou em 1,93m de altura. O apelido brincava, também, com a complexidade lúdica de um dos – não só literalmente – maiores cantores e compositores brasileiros. A figura que, ao mesmo tempo, era o gigante que causava estranheza pela sua estatura de goleiro de ponta e pela fama de mau, também impressionava pelo jeito atencioso de se relacionar. Mesmo que saibamos que Não Existe Saudade no Cosmos, Erasmo deixou-nos com um buraco em sua partida no último dia 22, aos 81 anos. Erasmo Carlos era muita coisa e todas elas ao mesmo tempo. O Tremendão rejeitava a dualidade simplista dos opostos. Ele era amar e chorar; multidão e solidão; o novo e o velho. Não caminhava entre os pólos, ele ocupava os dois, ao mesmo tempo, os dois o formavam e o moviam – sempre isso e aquilo. Gigante e gentil – no que foi e na música que ainda sempre será.

Nome de peso da antropofagia lírica da jovem guarda dos anos 60, Erasmo foi ícone de um movimento musical e social que tomou o Brasil de assalto. Pela televisão, lançaram moda, revolucionaram a imagem, e a juventude se fez rebeldia embebida por influências vindas de fora em um amálgama com o ser brasileiro, aqui, no terceiro mundo de uma sociedade que queria por tudo mudar.. Caminhando pelo Rock n’Roll e a MPB, o Tremendão fez história sendo um dos que abriram a porta para a maior geração de músicos do Brasil. Continuou, então, mais vivo do que nunca produzindo nas décadas seguintes – em um diálogo constante com o novo e uma ligação memorável com o velho. Além das parcerias clássicas com Roberto Carlos e Rita Lee, gravou, também, com nomes gigantes de outras gerações, como Renato Russo e Emicida, e até mesmo o – destoante – Marcelo Camelo.

Na sua discografia, o amar é ponto fundamental para Erasmo. Amor entende-se na complexidade de amar, do que é genuinamente humano e move o ser. Apesar de seu penúltimo disco, Amar É Isso (2018), ser uma obra de e sobre a paixão carnal, amar não era restrito a isso. A própria ideia do amor romântico – limpo – é, por vezes, negado por Erasmo. Não configurando uma ode contra amar, pelo contrário. É um entendimento de amor como pulsão de intensidade, de viver, do amor como estado de amar. Dois Animais na Selva Suja da Rua vivenciam o amar; são iguais, dois animais que se animam, e que pode o caminho cansar nosso corpo – e, se pensarmos que gente certa é gente aberta, se o amor chamar, eu vou.

Esse amar não anula, porém, o chorar de Erasmo. Coloca-se, em 1971, que Agora Ninguém Chora Mais, mas o choro ainda escorreu pelo saboroso tempo de vida e carreira do Tremendão. Em um ato da mais bela rebeldia poética, a primeira faixa do seu álbum derradeiro, de 2022, tinha que categoricamente indicar uma possível lápide ao vascaíno -pelézista: “Nasci para Chorar“. Nasceu, de fato, para chorar e amar, junto, – por vezes um pouco mais um, às vezes um pouco mais outro, mas sempre os dois. Podemos, já, desconsiderar o incessante questionamento de Caetano, de pra quê rimar amor e dor. A rima acontece na própria vivência que abastece as duas coisas, é natural, oras. Não precisa perguntar tanto, Caê.

O amar e o chorar são parte da mesma pulsão de sonho do carioca. Apesar de romântico-crônico em seu penúltimo disco, Erasmo era alguém que tinha uma percepção de amar como parte substancial de um processo coletivo, social e político. Quando versava: “Não acredito no dito maldito que o amor já morreu, tenho fé que meu país ainda vai dar amor pro mundo, um amor tão profundo e tão grande que vai reviver quem morreu”, Erasmo alimentava um transformar por um amar coletivo. Antes, na mesma canção, espremeu que: “Me curo da vida sofrida sentida que deram pra mim”, – assim, se o amar é parte da vida coletiva-social-política, o chorar também está costurado em um sofrer que não é individual e nem individualizado.

Amar e chorar são umbilicalmente construídos juntos às noções de multidão e solidão na obra de Erasmo. Outros pólos antagônicos que, em tese, não se tocam.Versar que “As pessoas que caminham, seja lá para onde for, é uma gente que é tão minha” é demonstrar esse caráter apaixonado pelo viver coletivo, pelas potencialidades do outro, e pela possibilidade de construir com e pelos outros. Sem que impeça, contudo, que este mesmo sujeito, regado de um amor transformador, sinta-se um beija-flor perdido no próprio jardim, com a vontade disponível de não existir. Como no poema de Ferreira Gullar, gravado na voz de Fagner décadas depois: “Uma parte de mim é multidão, Outra parte, estranheza e solidão”. Galhos de um mesmo ser que passam por um mesmo sonhar.

É com esse combustível d’alma que Erasmo fez um dos mais belos discos da música brasileira, “Carlos, Erasmo”, de 1971. Com um jovem Erasmo pulsando vida e sonho de uma geração que não morre, o disco é coisa fina de um sentimento que até hoje se descende. Ainda É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo. Carregada de um amar rebelde e sonhador, esta se faz como a mais linda canção de uma ideia de viver e acreditar, não só a melhor música de um mero disco ou de um mísero cantor. “Descansar não adianta, quando a gente se levanta, quanta coisa aconteceu” é um grito-convite do que se pode pensar e fazer na relação entre o ser, o sentir e o construir. É um dos mais belos escritos que se pode almejar em escrever.

Se com 26 Anos de Vida Normal, Erasmo tinha medo de ler no edital “morreu em vida lendo jornal”, agora pode descansar, que sua vida passou bem longe de qualquer marasmo. Tremendão foi, que nem o seu apelido, gigante na música brasileira e permanecerá vivo em cada verso singelamente deixado pelas suas garras de gênio.