São João del-Rei e São Tiago, duas cidades do Campo das Vertentes possuem – cada uma ao seu modo – uma tradição peculiar chamada encomendação de almas. Grupos compostos por fiéis católicos saem às ruas da cidade na quaresma, à noite, rezando em preces e cânticos aos mortos. Os pontos principais para oração e meditação são as esquinas, encruzilhadas, portas de cemitérios e igrejas.
      Segundo o folclorista Ulisses Passarelli, “o rito da cultura popular conhecido por encomendação das almas praticado no período da quaresma com o objetivo de rogar preces em favor das almas, visando seu progresso espiritual e alívio das penas. Objetiva ainda exortar aos vivos o cumprimento dos ideais cristãos para livrar-se das penas infernais. O rito, sempre noturno, tem como característica marcante o aspecto tétrico, o canto lúgubre e o cunho lendário envolvendo os mortos”.
      Embora próximas, cada cidade possui seu próprio rito. Em São João del-Rei, o grupo responsável pela encomendação é muito antigo, talvez setecentista. Sua composição é de homens. A execução dos cânticos é feito por instrumentos em forma de orquestra, o que trás um grande diferencial por dar mais brilhantismo ao rito. Outro fato que comprova a atuação é a partitura que faz parte do acervo da Lira Sanjoanense que data de 1809.
Alerta, mortais, alerta! E porque não duvidais, Lembrai-vos daqueles, Dai-lhes, por piedade,
Que é tempo como está visto… como é certo mandar ele, que em pranto desfeito, o socorro vosso,
Que a Paixão de Jesus Cristo, que oreis por todo aquele, já sentem o efeito por um pai-nosso
Sua morte faz lembrar. que ele veio libertar. da triste agonia. e ave-maria!
*Trecho de partitura do acervo da Lira Sanjoanense datado de 1809*
      Juntos, orquestra e coro formam um grupo, que é acompanhado por alguns fiéis. O rito acontece durante três sextas-feiras da quaresma. A cada dia, são sete paradas para o canto, acompanhado da matraca e seguido da reza do terço em cada interrupção.

Alerta, alerta, um pecador!

      Em São Tiago, a tradição é antiga. Em tempos remotos, conforme relatos da atual coordenadora, Sra. Antônia Santiago existiam dois grupos, sendo um masculino, outro feminino. O de homens era coordenado pelo popular Sr. Eduardo, passando depois a José Bruno. Acompanhava-se de piston, clarineta, saxofone e matraca. Contudo pela falta de novos coordenadores este grupo se extinguiu. O de mulheres ainda se mantém, passando de dona Maria Rosa a dona Sebastiana, depois a dona Benedita (“Nenêga”), que era filha da anterior.
      Desde a constituição da encomendação de almas, em São Tiago, consta que os grupos não usavam berra-boi, nem lençóis brancos sobre a cabeça, o que difere de outras cidades de Minas. Um fato curioso que até hoje assusta as pessoas são as superstições, onde não se podia olhar para trás, nem assistir a sua passagem. Fato que se justifica pelos antigos moradores de que se isso ocorresse haveria de acontecer como, por exemplo, a transformação da vela que era dada a pessoa que via a encomendação de almas passando em um “osso humano” ou mesmo ao virar se para trás ver almas agonizando.
      Relata-se o caso ocorrido com um famoso sacerdote nessa cidade, que fora a altas horas da noite abrir a porta de sua casa para repreender com veemência as “encomendadeiras” devido a desorganização do grupo. Não conseguiu de forma alguma abrir a fechadura. Foi impossível destrancá-la. No outro dia a mesma porta destrancou normalmente, sem problemas. Uma causa sobrenatural a travara. Comenta-se que daí em diante o próprio padre passou a defender aquela tradição, dizendo que mesmo deixando a desejar na organização, conservava um valor religioso real.
      A cantoria do grupo não tem acompanhamento instrumental além de uma matraca. Reúnem-se às 23 horas no portão do cemitério, onde, após acender uma vela, que ali fica depositada, fazem algumas orações iniciais, bate-se a matraca e canta-se o “alerta, pecadores!” e depois um rogo à virgem:

S – Alerta, alerta, um pecador! Óh virgem Senhora,
Lembremos das benditas almas… mãe dos pecadores,
C – Benditas almas lembrai-nos das penas
do purgatório! da eternidade …
S – Peço que reze um pai-nosso…
C – Um pai-nosso e uma ave-maria!
S – Pelas almas do purgatório…
C – Benditas almas do purgatório!
Seja! Seja! Seja! seja,
pelo amor de Deus!!!
*Obs.: S – solista ; C – coro*

      A seguir, de mãos dadas, rezam um pai-nosso e uma ave-maria. Batem a matraca. Saem pelas ruas, cantando e rezando os mistérios do rosário. Após cada canto a matraca é acionada e assim nas encruzilhadas, onde param a cantar. Cada parada é chamada “ponto”. O número de pontos a percorrer deve ser ímpar. Os dias de sair à rua são as 2ª, 4ª e 6ª feiras da quaresma. Durante a semana santa, na semana das dores saem todos os dias.
      De acordo com Passarelli, existem três motivos para que a cerimônia de “Encomendação de Almas” permaneça até hoje: tradição, crendice e fé. Já o Padre Diovany Roquim, pároco da Catedral de Oliveira, destaca que a Igreja Católica sempre apoiou e incentivou a oração pelos falecidos, desde seu início cultuou a memória de seus santos e rezou pelos que passam à morte e os preparou para este momento. Também que a Quaresma, como pregação da conversão e da penitência – “Tu és pó e ao pó voltarás”, quando começa pelas cinzas. “Mas quando as orações são marcadas por rituais estranhos, medo, obrigações complicadas elas precisam ser mais bem compreendida para fugir à superstição”, conclui Roquim.
      Reportagem: Francisco José e Marcus Santiago.
      Foto: Marcus Santiago.
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