8ª edição

Vida da Gente é uma coluna quinzenal de divulgação dos zines¹ produzidos por mulheres em situação de privação de liberdade da Unidade Feminina da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) de São João del-Rei.

Saudade quando longe da família, de Anália Bombom, outubro de 2022.

Vida da Gente 8ª edição

Vida da Gente 8ª edição

Vida da Gente 8ª edição

Transcrição de Saudade quando longe da família, de Anália Bombom

“Saudade quando longe da família. Um pouco de toda minha…

Vou começar contando, que antes de tudo acontecer, a saudade só existia porque eu não sabia como era estar sozinha, no meio de tanta gente em um só lugar, lembro do que hoje não tenho. Sabe, esse sorriso é e era o meu melhor amigo. É saudade, minha saudade tem um nome: MÃE, FAMÍLIA.
Quando eu era pequeninha eram eles que cuidavam de mim e me faziam sorrir, aí quando foi passando o tempo eu cresci, conheci a maldade do mundo, os desafios da vida e me mostraram coisas que eu não sabia e podia, eu pensei que eu podia voar e como se tivesse asas, eu fui.
E caminhando conheci pessoas, hoje vejo como más companhias, vejo como se eu pudesse voltar atrás e saudade eu não sentiria e meu abraço, misturado com sorrisos, me traria de novo a minha alegria. Eu tive que perder pra aprender e aprendi que tem mal que vem pro bem e que se não for pelo amor é pela dor. E então resolvi crescer, plantar e colher. Eu poderia ter feito escolhas erradas, mas foi assim que me fortifiquei. Mas ainda sim a saudade eu não superei. Estou me conhecendo cada vez mais, conheci pessoas agora, mesmo no erro, que me ensinaram o que é o amor, a recuperar-se.
A APAC de São João del-Rei, amor com disciplina. Claro que mais uns tombos eu levei, mas para tudo há tempo e eu sei que hoje tudo que passei tinha que ser trilhado, pois no meio do caminho eu não teria mudado. Mudei para melhor, hoje se eu já dava valor a minha família, ela é a base e minha maior riqueza, hoje não importa o que passou, mas as marcas e as cicatrizes que o mundo e minhas escolhas eu mesmo tirei, mas superei e hoje graças a minha diferença como pessoa, meu sorriso eu recuperei. 
Só a SAUDADE que não pude mudar, pois todos os dias é minha mãe que não vê as minhas lágrimas rolarem, quando eu puder ela estará comigo e eu irei curtir o refúgio do abraço de quem mais se ama!!!

Mãe, você é minha saudade.
Eu sei e você sabe, já que a vida quer assim, que nada levará você de mim e entre nós não existe distância, só dois corações que se une. Que todo grande amor só é bem grande se não tivermos medo de sofrer, porque sofrer faz parte do amor. Que todos os caminhos me levam a você. Às vezes, mãe, o meu jeito de amar não pode ser compreensível e minha forma de mostrar o quanto quero você, mãe, às vezes pode sufocar, lembra? Tudo que fiz foi sincero até aqui e sempre será. Existe um amor que nos mantém unidas e mesmo longe dos seus olhos sinto você todos os dias.
Trago essas flores. Continuo com a saudade. 

A DOR QUE MAIS DÓI
Trancar o dedo numa porta dói, bater com o queixo no chão dói, torcer o tornozelo dói, dói bater a cabeça, dói morder a língua, mas a que mais dói é a dor das lembranças de um irmão, de alguém que mora longe, saudades que guardo na memória de infância, saudade de um gosto de uma fruta, saudade de uma cidade, saudade do que já fomos e não volta mais, quando ainda não tinha cabelo branco. Todas essas saudades doem, mas a saudade que mais dói é de quem se ama. Saudade da pele, da presença, do abraço, do carinho. 
Você pode ficar na sala e ela no sofá, sem se verem, mas sabiam que estavam lá; você podia ir para um lugar e ela no outro, mas ainda sim você sabe onde ela está e volta logo. Sobra ainda a SAUDADE que ninguém consegue deixar de obter. Saudade é não saber, não saber se ela continua gripando no inverno, é não saber se ela continua deixando os cabelos clarear, é [não] saber se ela continua usando a mesma camiseta que dei, não saber se ela está bem como prometeu. Sim, é ter saudades de cada momento que viveremos juntas, mãe.
E enquanto você existir e eu estiver privada da liberdade, ou até mesmo aí pertinho de você, a saudade vai morar em mim e vai morar em você. Eu te amo.

“Entendi que minhas cicatrizes eram muito mais que apenas cicatrizes. Elas contavam toda a minha história. Falavam sobre o caminho que percorri para chegar até ali”. “…afinal, alegrias e adversidades compõem quem somos.”
SAUDADE MÃE.”

Mediadas por Taisa Maria Laviani², as oficinas de zines realizadas na APAC Feminina de SJDR tem como objetivo abrir espaço para o diálogo, a reflexão, o fazer manual, a criatividade e a autoralidade, a partir da prática artística e comunicativa, bem como promover a circulação dessas narrativas e criações através da coluna Vida da Gente.

Erguer a voz a partir de seu lugar no mundo é um ato de poder existir, se reconhecer e ser reconhecido. E o que as mulheres em situação de privação de liberdade tem a nos dizer? A nos mostrar? Fique de olho!

Notas

¹ O Fanzine, ou simplesmente zine, é uma publicação independente. Um zine é um veículo de comunicação (assim como o jornal, livro, revista, gibi, etc.) que pode assumir qualquer formato, abordar qualquer tema e ser publicado por qualquer pessoa, com os mais baixos recursos. Por isso, segue à risca o lema “faça você mesmo!”.

² Taisa Maria Laviani é formada em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual Paulista, zineira e mestranda do Programa Interdepartamental de Pós-graduação Interdisciplinar em Artes Urbanidades e Sustentabilidade, da UFSJ.