Walquíria Domingues                     03 de Abril de 2013 | De São João del Rei

Muitas recordações de um passado ainda vivo em cada canto da vida de Benito/ Foto: Walquíria Domingues

Um menino fugia da escola para ir ver o trem passar na estação. Ele amava ouvir o barulho do apito das locomotivas, e observar o movimento. Em Pará de Minas, um município do interior de Minas Gerais, bem no início da década de 1930, nascia um apaixonado por trens. Seu nome é Benito Mussolini Grassi de Lellis. Sim, batizado e registrado com o nome do ditador italiano, então primeiro-ministro.  
Em homenagem a Mussolini, a ideia do nome foi da sua colônia de italianos, que foi bem acatada por seu pai, Celso Grassi, um engenheiro vindo do norte da Itália. “Naquela época, Mussolini estava praticamente substituindo o Rei Humberto, com todas as iniciativas na mão. Quando veio a guerra, ele cometeu uma falta gravíssima. Inclinou-se muito para o lado do Hitler, e foi a perdição dele, infelizmente”, conta o nosso Benito.  
Quando ele se apresentou no regimento em Belo Horizonte, levou um grande susto. “Chegou minha vez, e eu me apresentei. O tenente olhou bem pra mim, tornou a ler a certidão, e disse: faz o favor, senta ali naquela cadeira”, fala Benito. Com medo de alguma represália, até mesmo de ser preso por causa de seu nome, Benito ficou com frio na barriga. “Quando encerrou tudo, o tenente foi até onde eu estava, me deu a mão e me cumprimentou, e disse: você tem um nome muito grande e valoroso. Zela por este nome. Eu tenho uma admiração pelo Benito Mussolini muito grande”. Pois foi isso que fez. Honrou não só o nome, como também seu sangue, seus amores e sua história. “E o meu nome lá vai navegando por aí”, diz.  

O trilho, o carvão e as máquinas 

Como dizemos nós, mineiros, “mas que trem essa história”! Os trilhos das ferrovias mineiras levaram Benito para todos os cantos e traçaram o caminho da sua vida. Sentado na sua humilde sala, repleta de quadros, fotos e pinturas de locomotivas, munido de vários álbuns de fotografia nas mãos e olhando para o retrato do pai, Benito começou a contar sua vida, sem se esquecer de uma só data, nome ou acontecimento. Com seus 81 anos, possui uma memória de dar inveja.  
Incrivelmente, toda a passagem de sua história se deu nas linhas férreas de Minas. A infância, os primeiros empregos, a profissão, a sua esposa, que conheceu dentro do trem, e sua vinda para São João del-Rei. “Minha história com a ferrovia começou em Pará de Minas, quando eu ainda estava no ‘grupo’. Eu costumava escapulir da aula e ir lá pra estação ferroviária”, relembra Benito. 
O apreço por aquela estação é enorme, afinal, ela foi construída por seu pai. “Lá era um terreno de brejo. Os antigos lá falavam que aquele italiano, meu pai, não estava bom da cabeça. Como ele ia fazer uma estação de trem de ferro no meio do brejo? Quando o trem passasse, com o peso da máquina, ia afundar tudo com os passageiros”, conta o ex-maquinista, indignado com as lembranças. 
Era 1913. Com técnicas inteligentes para um engenheiro daquele tempo, Celso Grassi ergueu a Estação de Pará de Minas e, assim, criou para Benito uma porta para o mundo. “Eu ia pra lá e sentava na beira da plataforma pra assistir as manobras dos trens que passavam. Era o antigo trem da estrada de ferro Paracatu”, diz. Benito se lembra até mesmo dos horários e dos destinos dos trens que passavam por lá. E, em 1945, com o falecimento do pai, foi lá que ele, sua mãe e seus seis irmãos deixaram Pará de Minas e foram para Belo Horizonte. “Ela vendeu o sítio que tínhamos e fomos para BH, exatamente no dia 15 de novembro de 1945”, explica, assim, detalhadamente.  
Na capital, ele trabalhou num cinema, numa indústria de fundição, numa fábrica de pregos, e na Viação Vitória, como trocador. “Foi assim que eu fui ajudando minha mãe. Dava o dinheiro tudo pra ela”, recorda. Quando trabalhava como trocador, Benito encontrou um velho amigo, do tempo de escola, lá de sua cidade natal. Esse rapaz lhe ofereceu um emprego no vagão-restaurante da Rede Mineira de Viação Férrea. Lá, ele começou como agenciador, depois foi garçom, gerente do restaurante e até mesmo cozinheiro. Mas, como era uma firma particular, não havia a possibilidade de fazer carreira. Então, ele foi trabalhar no quadro oficial da ferrovia.  
“O primeiro serviço que eles me deram foi o de descarga de combustível, que era carvão, pedra e lenha. Eu descarregava 30 toneladas de carvão. Com dez dias eu já estava com a mão tudo estourada e um cheiro insuportável de enxofre no corpo. Mas eu aguentei, pois queria me efetivar para ficar no quadro de servidores públicos da união”, conta Benito, além de mostrar uma fotografia da época, ao lado dos carvões. O trabalho era árduo, mas ele aguentou. “Foram 38 anos de serviço”, diz, orgulhoso.   

O trilho, o maquinista e São João  

Os trilhos férreos, então, trouxeram Benito para São João del-Rei. Em junho de 1960, ele foi transferido para ser maquinista, cargo em que permaneceu por 30 anos. Na época, o movimento ferroviário era intenso, funcionavam 27 locomotivas. “Tinha o expressinho, o trem do sertão, um pra Lavras, um noturno pra Barbacena, fora os que chegavam. Era muito movimentado”, relembra o ex-maquinista. “Eu passava pela Avenida Leite de Castro com o trem. Lembro, como se fosse hoje, da Avenida toda cortada pelos trilhos”. Pelas fotos mostradas, é possível reconhecer os locais, as casas, a fábrica de tecidos São João e a atual ponte que liga a Rua Paulo Freitas e a Avenida Leite de Castro.  
 “Eu vivia chegando e saindo”, diz Benito.  E dessa maneira chegou a São João, com três filhos e, depois, aqui, nasceram mais quatro. Seis mulheres e um homem. No meio das mulheres, quatro gêmeas.  Sua esposa, Maria de Lourdes Grassi, era uma artista. “Uma pintora de primeira”, conta. Morreu com 79 anos. “Eu estava com 70. Ela era mais velha que eu, mas foi uma criatura fantástica que eu tive na vida”, relembra, com muita saudade nos olhos.  “Já vai fazer 10 anos, mas ela não sai da minha cabeça. O jeito simples dela, com tanta cultura, musicista que só vendo. Tem muitos quadros dela pintados espalhados por diversos lugares”, fala e recorda. Seus olhos umedecem, e ele olha pra parede, procurando pelo que restou: as lembranças das fotografias emolduradas.   
Muitas fotos e recordações, essa é a forma que Benito encontrou de nunca se esquecer por onde passou, o que passou e o que viveu. Mostrou inúmeras fotografias das locomotivas e da nossa Maria Fumaça na estação e pelos caminhos do mundo afora. Fotos da esposa, de viagens e de máquinas fabricadas na Alemanha, outras americanas. Reportagens guardadas com carinho, sobre as ferrovias, sobre a estação de São João e sobre ele mesmo, afinal Benito sempre foi um guardião de todo este patrimônio.  
Tão guardião das histórias e da própria vida das ferrovias, que foi um dos Guardiões do Patrimônio, projeto autoral da fotógrafa são-joanense Kátia Lombardi. “Pessoas anônimas, com profissões por vezes pouco reconhecidas, trabalham para manter de pé o patrimônio histórico, artístico e cultural da cidade. Quem são essas pessoas, por que elas dedicam a vida a essas atividades, qual sua rotina de trabalho? Essas são algumas das questões que me interessavam enquanto eu fazia esses dez ensaios fotográficos”, explica Kátia, em seu projeto.  

Um ator, a câmera e a encenação 

Benito Mussolini, além de maquinista aposentado pela rede, é músico, ator de inúmeras peças, filmes e novelas, e, anualmente, representa Abraão na procissão de Semana Santa. “Eu tenho muitos vídeos das minhas participações. Inclusive uma entrevista no Globo Repórter e também no Fantástico”, conta. Começou fazendo peças de teatro com Marco Camarano e, com o diretor, encenou a “A Pedreira das Almas” e “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes, “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, “A missa leiga” e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.  
Quando os cineastas chegavam a São João del-Rei, procurando cenários naturais da região, Benito lembra que eles pediam aos grupos de teatro locais apoio para os elencos secundários. E lá ia o homem, que sempre arrumava algum papel. Chegou a trabalhar no filme “A Nudez de Alexandra”, de Jece Valadão, em “Rua Descalça”, de J. B. Tanko, e em algumas novelas da Rede Globo, como “Escrava Isaura”, “Voltei pra Você” e “Chapadão do Bugre”. Em SJDR, encenou no longa-metragem “O Mascarado”, um western bem tupiniquim, escrito, produzido e dirigido por José Resende.  
“Eu gostava de teatro desde a época de escola. As professoras sempre organizavam teatrinhos. Conheci o Marco Camarano quando ele era gerente no Cine Glória, que eu muito frequentava. Quando ele resolveu fazer a peça “Jesus, o filho do homem”, me convidou pra entrar no seu teatro. Ele queria organizar um grupo teatral, e eu acabei gostando”, recorda.  
Benito, ao longo dessa extensa viagem que é sua vida, ainda participa de cinco corais da cidade e é membro do conselho fiscal da Associação de Aposentados e Pensionistas (ASAP). Com a agenda cheia, ele conta que vai viajar o mês inteiro com os corais. Com a disposição de um menino, o mesmo que corria para a estação ao ouvir o apito das locomotivas, e pelos trilhos ou não, nosso Benito (sim, nosso) vive em movimento, sempre pelos caminhos do mundo afora. 

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