Lendas e histórias de fantasmas povoam a imaginação de
pessoas que moram em pequenas cidades de Minas Gerais. Esses casos vêm de uma
época que nem existia luz elétrica. Mas, até hoje, eles metem medo em muita
gente.
Bruno Ribeiro, Douglas Caputo, Michele Santana
O que não falta no
interior de Minas Gerais são histórias de assombração e lendas que atravessam
gerações. Por aqui, as crianças já nascem envolvidas com esses casos. Os pais
acreditam que devem enterrar o cordão umbilical dos filhos para que ratos não o
comam. Caso contrário, a pessoa pode virar ladrão. Também vêm de pequenas
cidades mineiras e de suas fazendas coloniais mitos de fantasmas que povoam a
imaginação das pessoas. Não é difícil encontrar um morador que não tenha presenciado
ou ouvido falar de barulhos de correntes, choro de escravos ou passos de
pessoas madrugada afora.
Um exemplo disso
é a aposentada são-tiaguense Maria Caputo de Castro. Ela conta o aperto que
passou com os irmãos numa noite escura na roça. “Quando eu deitei, a cama começou
a gemer. Chamei uma irmã mais velha, que disse que era coisa da minha cabeça. Mas
amolei tanto, que ela resolveu pegar uma lamparina para procurarmos alguma
coisa debaixo das camas, mas não encontramos nada. Aí, quando a gente deitou de
novo, foi um barulhão de tábua caindo no sobrado. Tivemos tanto medo que enrolamos
em cobertores e fomos pra casa de um vizinho acabar de passar a noite, pois os
barulhos não iam embora. No outro dia, quando voltamos para nossa fazenda,
estava tudo em ordem, inclusive as tábuas do sobrado”. Maria não sabe explicar
o que aconteceu naquela noite, mas desde criança ouvia dizer que a casa era
assombrada e até hoje não gosta de se lembrar daquela passagem.
Essas histórias
são tão famosas no interior mineiro que em São João del-Rei foi criado, em 2007, o grupo
“Lendas São-Joanenses”, com o objetivo de preservar relatos que contam um pouco
da história local. Pelo menos uma vez por mês, 14 pessoas, entre guias
turísticos e atores, levam visitantes para conhecerem locais com episódios de
arrepiar. São 12 encenações no total, mas segundo o organizador do grupo, o
guia Jadir Janio, três delas se destacam no itinerário das apresentações
noturnas pelas ruas históricas da cidade. Um destes mitos é o que dá nome ao
bairro Segredo. Janio comenta que o episódio vem da época da escravidão, quando
uma sinhá resolveu se vingar do marido e de sua amante, uma escrava da família.
“Ao descobrir a traição, a senhora matou a adúltera e cozinhou seu coração para
que o esposo comesse. O fato foi escondido do marido e o segredo acabou
nomeando a região onde o episódio teria acontecido”, explica.
Chica arranca os
olhos para não ver o diabo.
Foto: Lendas SJ/ Divulgação
Lenda do Retrato. Foto: Lendas SJ/ Divulgação

Outra lenda que
chama atenção dos turistas em
São João del-Rei é da “Chica mal-acabada”.
Janio diz que se trata de uma mulher que ia à igreja e colocava um espelho na
bíblia para paquerar um rapaz que se sentava atrás dela. “Como isso é pecado,
ela passou a ver, no lugar da imagem de seu pretendido, a figura do diabo. Para
parar de ter visões de Satanás, a ‘Chica’ arrancou os próprios olhos”. A lenda do
“retrato” também faz sucesso entre as pessoas que acompanham o grupo. Trata-se
de uma senhora que abordou um padre, recém chegado a São João del-Rei, e pediu
que ele fosse até a sua casa para confessar o filho à beira da morte. Quando
chegou ao local, o religioso viu uma foto da mulher que havia pedido o
sacramento. Perguntou para os moradores da casa onde ela estava e foi informado
que ela havia morrido fazia três anos.

Janio explica
que essas histórias surgiram num cenário que estimulava a criação de narrativas
fantásticas. Isso porque, “na escuridão da época, sem luz elétrica, o ambiente ajudava
a causar o medo que alimentava a imaginação das pessoas”. O grupo “Lendas São-Joanenses”
foi inspirado pelo livro “Contam que”, escrito entre as décadas de
1930 e 1940 pelo jornalista local Lincoln de Souza. Até o momento, Janio estima
que cerca de quatro mil pessoas já assistiram às apresentações.  Os interessados em participar do passeio
podem entrar em contato pelo telefone 32 8844-0245
ou pelo site Lendas SJ. O valor do espetáculo
é R$10.  
Luz do Mundo
Da janela da cozinha,
Ermínia se lembra das
 aparições da Luz do Mundo

Também não são
raras as histórias de pessoas que já tiveram algum contato com objetos voadores
que emitem luzes. Apesar de o nome ser diferente em cada cidade da região dos
Campos das Vertentes, em São
Tiago, a 45 quilômetros de São João del-Rei, o fenômeno
é popularmente conhecido como “Luz do Mundo”. Por lá, a história é levada tão a
sério, que tem até livro que trata sobre o assunto. Em 2008, a pedagoga aposentada,
Ermínia Caputo, reuniu narrativas que ouviu e vivenciou ao longo dos anos. Na
obra intitulada “Acaso são estes os Sítios Formosos?”, a escritora descreve
cenas de aparição da Luz do Mundo. 

Não existem
estudos científicos sobre o fenômeno, mas no imaginário popular a explicação
vem de fatos religiosos. A narrativa oral informa que a Luz do Mundo teve
origem numa maldição. Uma jovem teria sido enterrada com uma fita que simboliza
a irmandade católica das Filhas de Maria, o que é proibido. Por conta disso, a
alma da moça se transformou em uma luz que vaga pelo mundo. Seu descanso só
viria se algum corajoso lhe retirasse a fita. E gente disposta a fazer isso tem
aos bocados em São Tiago.
Em seu livro,
Ermínia relata o episódio de um senhor que desafiou o medo e tentou apanhar a
fita do espírito. “No local denominado Vargem (próximo ao centro da cidade), a
Luz aparecia muito, beirando o esbarrancado que há por lá. Um senhor muito
simples, que vivia a puxar esterco para vender, dizia não ter medo da Luz e se
propôs a tirar-lhe a fita de Filha de Maria. Um dia ela apareceu e, corajoso,
ele chegou perto dela. À medida que se aproximava, ela ia se afastando, até que
ele caiu no esbarrancado”. Ermínia diz que o homem não se machucou, mas também
não conseguiu pegar o que queria.
Outra história
de gente que enfrentou a tal Luz aconteceu numa noite de pescaria. O aposentado
José Batista Santana, que garante já ter visto o fenômeno várias vezes, conta o
medo que passou com um amigo. “A gente saiu para pescar num lugar conhecido
como Ribeirão da Fábrica (a oito quilômetros do centro de São Tiago). No meio
do caminho, encontramos um conhecido, que disse que a gente ia encontrar a Luz.
Meu companheiro zombou do moço e falou que se encontrasse a Luz, ia puxar o seu
pé. Quando a gente estava perto do Ribeirão, avistamos de longe uma brasa de
fogo. Ficamos um pouco receosos, sem saber o que era aquela luz, mas
continuamos. A luz foi ficando mais forte e clareou as águas do rio. Ficamos
com tanto medo que resolvemos voltar para a cidade”, admite. 
Mas o que a
dupla de pescadores não esperava é que a Luz fosse acompanhá-los até bem
próximo da cidade. “Quando a gente chegou perto duma porteira, lá estava ela.
Sem saber o que fazer, tiramos o chapéu em respeito e passamos no meio do
clarão. Depois disso ela voltou pro mato e sumiu dentro de um esbarrancado”.
Santana conta ainda que ficou arrepiado, mas garante que o amigo ficou mais
apavorado ainda e que nem teve coragem para puxar o pé da assombração. Depois
desse episódio, o aposentado, ressabiado, afirma que “não se deve abusar com
essas coisas”.
Esse não foi o
único caso de aparição da Luz para a família Santana. O aposentado lembra que
sua mãe viu o espectro perto do moinho que tinha na roça em que moravam.
Sozinha com os filhos pequenos, Antônia Liberata de Jesus precisava buscar o
fubá para o jantar. No meio do pasto, deparou-se com o clarão. O horror foi
tanto que ela voltou às pressas para a fazenda. Mas a Luz a seguiu até uma
porteira. Sem saber o que fazer, Antônia começou a rezar e passou no meio
daquele brilho. Assim que chegou à casa, guardou os cachorros, ordenou que os
filhos ficassem quietos e continuou a rezação. Logo em seguida a Luz foi
embora.     
Ermínia, a
escritora, também garante já ter visto a Luz várias vezes da janela de casa,
principalmente no entardecer. “Ora ela andava, ora ela aumentava de tamanho,
ora ela abaixava o facho. Tinha cor amarelada. Eu nunca a ouvi chiar, mas tem
muita gente que diz ter ouvido barulho vindo da Luz”. Ermínia não acredita na
lenda da assombração com fita no pescoço e assegura que não sente medo. Mas,
para ela o fenômeno pode ter explicação científica. “É alguma coisa natural.
Pode ser um fogo-fátuo (gases de decomposição que em contato com oxigênio
entram em combustão), um balãozinho. Eu acredito nisso, mesmo com tantas
histórias de pessoas mais velhas e até da minha idade acreditarem no mito da
Luz”, afirma.
Não se sabe ao
certo de onde vem a lenda da Luz do Mundo. Hoje, poucas pessoas relatam sua
aparição, apesar de quase todo mundo da cidade conhecer suas histórias. Ermínia
diz que isso é um fato importante, porque se trata do registro da história de
um povo. “Era um tempo que não havia luz elétrica, televisão, computador. Mas
esses casos vêm da oralidade, do passar de um para outro. Eles tinham a função
de alentar nas noites escuras. É um patrimônio imaterial. Assim como a gente
tem os livros, as roupas, os álbuns dos antepassados, também temos que
preservar esse tipo de patrimônio”, defende.
Lágrimas de morte
Da casa da família
Gabet restaram algumas pedras
e as ruínas do fogão à lenha

Dizem que em
noites escuras, na região da Pavuna,
a dois quilômetros do centro de São Tiago, o choro do espírito de uma mãe
atordoa quem passa pelo local. Entre as ruínas de uma casa do início do século
passado, a alma de Maria José Gabet, a Nhanhá Gabet, veste preto e vaga em gemidos
e lágrimas pela morte dos sete filhos e do marido, fato ocorrido dia 13 de
setembro de 1916. O espanto em torno do caso é por conta das circunstâncias das
mortes. O pai da família, José Gabet, obrigou todos a tomar vermífugo. O
remédio, na realidade, era estricnina, um veneno potente. Um a um, os filhos e
o casal foram tombando em
agonia. No entanto, Nhanhá Gabet sobreviveu graças à ajuda
dos vizinhos. De 1916 a
1960, ano de sua morte, a matriarca nunca deixou de vestir roupas pretas, luto
eterno que guardou em respeito à família.

Mas, o que teria
motivado o pai a matar os filhos, a mulher e a cometer suicídio? Segundo as
histórias contadas ao longo dos anos, José Gabet era um boiadeiro que sempre
viajava em comitivas de gado para o oeste de Minas Gerais. Numa dessas idas, engravidou
uma filha de coronel. “Isso aconteceu na ocasião em que o peão contraiu febre
amarela e teve que ficar por mais tempo que o esperado numa fazenda que servia
de pousada. Por lá, conheceu uma jovem com a qual teve um caso, e acabou
tirando sua honra. O pai da moça, um homem muito rígido, prometeu vingança. Seu
objetivo era matar José Gabet e sua família em São Tiago”, conta Ana
Paula Lara, professora de história que fez sua monografia sobre o assunto.
Ainda de acordo
com Ana Paula, a moça grávida teve pena do que poderia acontecer com boiadeiro.
Mandou um mensageiro avisar José Gabet sobre risco que estava correndo. “Sem
saber o que fazer e num ato desesperado, o peão foi a São João del-Rei e
comprou veneno numa botica para matar toda a família. Depois de beber com o
marido e dar o tal vermífugo para os filhos, Nhanhá Gabet percebeu que  as crianças estavam agonizando. Ela começou a
gritar e os vizinhos foram acudir. Ao verem a cena, os moradores do local deram
leite para a mulher que vomitou o veneno”. Mas, para Ana Paula, “a mãe
sobreviveu porque tomou veneno em cápsula, enquanto o resto da família ingeriu
a estricnina em pó, que tem ação mais rápida no organismo”, afirma.
  
A comoção social
em torno do caso gerou lendas sobre a família. A agente de saúde Kássia Campos
morre de medo só de ouvir falar no nome de Nhanhá Gabet. Moradora de região
próxima ao local do crime, ela conta que são comuns os relatos de pessoas que
já ouviram o choro triste da mãe que perdeu os sete filhos. A própria agente de
saúde relata já ter escutado gemidos vindos do lugar. “Quando eu era criança,
fui com minhas irmãs e primas até a Pavuna. Lá, nós escutamos vozes de outras
crianças, mas não tinha ninguém”. Nessa época, Kássia ainda não conhecia a
história do crime. Foi na adolescência que ela descobriu sobre as mortes e
encontrou uma explicação para o barulho de crianças que ouviu no passado. “Daí
eu liguei os gritos daquelas crianças com as pessoas que haviam morrido. E isso
gerou o pavor que tenho só de pensar naquele lugar”. A agente de saúde diz
ainda que nem de carro gosta de passar pela Pavuna.
O comerciante
João Batista de Andrade, o Batista, tem uma venda próxima ao local em que
aconteceram as mortes da família Gabet. E ele próprio garante já ter visto
coisas estranhas por lá. Em 1973, quando sua esposa entrou em trabalho de
parto, teve que ir buscar uma parteira numa rua próxima de sua casa. No meio do
caminho, ao avistar a Pavuna, viu uma luz estranha no local. “Sai de casa por
volta das duas da madrugada e por acaso olhei para o caminho que levava à
Pavuna. Vi uma luz na casa de Nhanhá Gabet. O clarão ia e voltava, parecendo
procurar algo ou alguém. Isso me fez arrepiar e ao me lembrar das mortes, fiquei
mais apavorado ainda”, lembra.
Em sua venda,
típica do interior de Minas Gerais, Batista ouve contar muitas dessas
histórias. A que chamou mais a atenção do comerciante foi a do enterro fantasma
dos Gabet. Batista se lembra do relato de um homem que teria tido uma visão de
assombrar. “Seu Geraldo Campos contava que depois de jogar baralho por um longo
tempo na casa de um amigo, na cidade, precisava voltar para sua casa, na roça.
O caminho era pela Pavuna e, como de costume, seguiu tranquilo em seu cavalo.
Ao passar pela ‘cava’ que se estendia até próximo à casa dos Gabet, viu um
funeral, com oito pessoas carregando um caixão. Achou aquilo estranho,
principalmente porque era tarde da noite. Parou o cavalo, tirou o chapéu, fez
uma oração e depois seguiu caminho. No dia seguinte voltou à cidade e, ao
questionar algumas pessoas, inclusive o coveiro, descobriu que ninguém havia
sido enterrado aquela noite”, diz Batista.
Nhanhá Gabet passou
os resto de sua vida nessa casa,
no centro de São Tiago

Mas, a
professora Ana Paula descarta essas versões sobrenaturais em torno do ocorrido.
Para ela, não há justificativa para o choro póstumo de Nhanhá Gabet, já que a
matriarca poderia ter feito isso ao longo dos 44 anos 
em que viveu sem a família. “Apesar do grande choque, ela levou sua vida em frente. Trabalhou
em Bom Sucesso (cidade vizinha a São Tiago) como diretora de um orfanato e, ao
voltar para sua terra, dedicou-se a ajudar quem necessitava. Boa parte do seu
tempo passava dentro da Igreja”, comenta.

A história
marcou o então distrito de São Tiago. O enterro, com oito caixões ao mesmo tempo,
era inédito na localidade. No registro de óbito da família, consta que o filho
mais velho tinha doze anos e o mais novo apenas três meses de idade. Todos
morreram por volta das sete horas da manhã.
Enquanto os
corpos eram velados, os capangas do coronel chegaram a São Tiago para matar a
família. Ao perguntarem onde os ‘Gabet’ moravam, foram informados do velório na
igreja e não puderam cumprir a ordem do patrão e levar um pedaço da orelha de
José Gabet como prova de sua morte. “Apesar de parecerem ter vindo de muito
longe, esses jagunços eram da região de Campo Belo, distante 110 quilômetros de
São Tiago”, diz Ana Paula.
Caça ao tesouro fantasma
Entrada para a gruta
mal-assombrada

Na região rural
de São Tiago conhecida como Gamelas,
quem espanta os visitantes é o espírito de um padre “doido” por metais
preciosos. Segundo a historiadora e professora Elena Campos, por volta de 1708,
época do Brasil colônia, o religioso José Manuel era dono de escravos e extraía
ouro de sua propriedade. “O que se conta é que para presentear o rei de Portugal,
o clérigo mandou fundir parte do ouro em forma de cacho de bananas. Porém, o
rei, sabendo disso antes de receber o tal presente, considerou a atitude de
José Manoel uma ofensa ou até mesmo um risco à Coroa, e mandou prender o padre
e confiscar seus bens. Mas, antes de ser preso, o clérigo escondeu o ouro em
alguma parte de suas terras, para evitar que outras pessoas sofressem como
ele”, conta.

  
Mas, a história
se espalhou e o que não faltou foi gente atrás do tesouro. O escritor Ademir
Mendes é uma dessas pessoas. No livro que publicou em 2011, ele conta o
mistério do ouro das Gamelas. Junto de alguns amigos, aventurou-se dentro da
gruta com o objetivo de ficar rico. “Entramos, um a um, muito receosos e
prevenidos para alguma emergência. A passagem era muito estreita, permitia a
entrada de uma pessoa de cada vez. Dentro do buraco o espaço era maior e nós
conseguimos ficar de pé andar normalmente. A luz do dia foi ficando escassa e
impediu que nós continuássemos nossa jornada. Ouvimos dizer que lanterna não
funciona dentro do buraco e, do lado de fora, funciona normalmente. Não
aventuramos ir muito longe no escuro, pois falavam da existência de uma fenda
muito profunda, sem fim, dentro da gruta”. O grupo de rapazes desistiu de
encontrar o ouro e voltou para cidade sem se tornarem milionários.
O técnico de
som, Rosauro Caputo, também se aventurou atrás do tesouro. Com 53 anos, ainda
se lembra da aventura que passou quando tinha 20. Junto de uma turma, Caputo
decidiu procurar o cacho de banana dourado. “Conseguimos entrar apenas uns três
metros dentro da gruta, pois a gente não tinha luz e havia muitos animais. Se
foi coisa do padre ou não, tivemos que sair correndo, pois fomos atacados por
um enxame de maribondos”, conta. Não por acaso nossa equipe de reportagem
também foi atacada por uma nuvem de maribondos enquanto fazia uma fotografia
para matéria.
O técnico de som
também traz na memória muitas histórias sobre o local. A mais impressionante é
a de um homem de Oliveira, cidade distante 56 quilômetros de São
Tiago. O tal homem se dizia guiado por um espírito e foi até a Fazenda das
Gamelas tentar a sorte. “Ele furou um buraco muito grande. Durante o trabalho,
teria ficado louco, fato que motivou sua família buscá-lo e levá-lo amarrado
para a casa. Depois de voltar para Oliveira, a família do homem teria ficado
rica”, diz Rosauro.
Segundo Elena,
essa história tem um fundo de verdade, já que, de acordo com registros, as
terras eram mesmo desse padre. Mas, a historiadora ressalta que é preciso
cuidado, já que não existem indícios de garimpo na fazenda das Gamelas. “Apesar
de a lenda afirmar que as terras eram ricas em ouro, alguns historiadores não
acreditam nessa hipótese, já que não há indícios de que houve grande
movimentação de mineração na região. O fato é que a história surgiu não se sabe
ao certo porque, mas até hoje mexe com o imaginário das pessoas”, afirma. 
  
Bens imateriais
Em entrevista
por e-mail, o historiador e técnico em assuntos culturais
do Museu Villa-Lobos no Rio de Janeiro, Pedro Henrique Belchior, diz que as
políticas de patrimônio sofreram mudanças importantes na década de 1980, com a
criação da Fundação Pró-Memória, liderada pelo pernambucano Aloisio Magalhães.
Segundo Belchior, os bens intangíveis passaram a figurar como acervo fundamental
da história da sociedade. “A importância desses bens, na interpretação dos intelectuais
fundadores do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, consistia
no fato de que seriam testemunhos incontestáveis da formação da identidade e da
cultura nacional”, comenta.
A valorização de elementos vindos da cultura oral,
segundo o técnico do museu, também modificou os interesses das abordagens
históricas. Os grandes personagens da história cedem lugar para pessoas e fatos
do cotidiano. “A perspectiva inaugurada por Aloisio Magalhães privilegia o
conceito de ‘referência cultural’. O foco não mais recai sobre grandes feitos e
personalidades históricas, mas sobre a importância de certas memórias, lugares
e fazeres na vida das comunidades. Assim, narrativas, saberes e fazeres locais
passam a ser tão valorizados quanto os tais bens patrimoniais representativos
da cultura brasileira”, explica Belchior.
Isso só foi possível com uma mudança de valorização
dos diferentes tipos de fontes historiográficas. Belchior sinaliza que
materiais orais passaram a ter o mesmo valor que os documentos escritos. Essa
nova perspectiva, segundo o historiador, permite entender como determinadas
comunidades lidam com os fatos do cotidiano. “A disciplina História renovou-se
profundamente ao longo do século 20, e incorporou ao estatuto de fonte outros
registros e memórias”.
Mas o que garante a veracidade das histórias contadas
pelas pessoas? Belchior descarta uma verdade universal. Para ele, existem
diferentes olhares sobre o mundo, diferentes formas de encarar a realidade. “Eles
não devem ser julgados em sua suposta “veracidade”, mas pelo que nos podem
revelar sobre o passado, mesmo sem a intenção de fazê-lo. Aliás, a oralidade é
mais interessante quando apresenta questões históricas de modo involuntário. O
que para muitos é puro misticismo, para os historiadores pode ser algo
revelador sobre a sociedade que produz tais lendas”.
Belchior relata ainda que essas histórias têm grande
importância para comunidades pequenas, do interior. Em cidades grandes, como no
Rio, as relações sociais foram racionalizadas e os mitos perderam importância
na explicação de determinados fatos. “Nas sociedades ditas “tradicionais” –
pequenas comunidades do interior –, a oralidade e os relatos fantásticos ocupam
um espaço maior. Esses relatos são transmitidos de geração a geração, sem que
os laços sociais dessas comunidades se percam. Há um caldo cultural que
possibilita a continuidade dessas crenças, ainda que cada vez mais fragmentadas
e reapropriadas por novos bens simbólicos, em tempos de globalização”.
Apesar das narrativas fantásticas terem perdido
importância nos grandes centros, elas ainda despertam interesses de órgãos que
cuidam da salvaguarda histórica. O Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) é um deles. Reuniu quatro livros que trazem a guardam
eventos populares como o Círio de Nazaré, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o
ofício das baianas de acarajé e o tambor de crioula do Maranhão. Esse material
está disponível no site do Iphan.
Além de cuidar
de seus bens materiais, como o casario antigo e as igrejas, pessoas de São João
del-Rei e São Tiago têm se preocupado em preservar o chamado patrimônio
imaterial. As lendas e as histórias de assombração fazem parte desses bens
intangíveis e povoam o imaginário popular das pequenas cidades de Minas Gerais.

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