Entramos na casa atrás da ponte, ex-pectativas a mil. Cachorros pulando, caixas empilhadas e arte por todos os cantos. Do corredor perto da sala veio meio correndo, meio andando, Geralda: a mulher mais viva que já conhecemos. O cabelo azul com franja, sua marca registrada, acompanha óculos redondos e um sorriso imenso e solto. Seus olhos possuem um brilho típico de quem já viu muito e conhece a vida.

Contamos nossa proposta, enquanto ela sentava à vontade, juntamente com cachorros em seu colo. Perguntamos, primeiro, como encarava as mudanças, e seu rosto, pensativo responde que, aos 63 anos, lida bem com o próprio corpo, apesar de algumas insatisfações. “Eu tiro assim de boa, essa coisa do corpo ir se modificando. Às vezes acordo de manhã e fico olhando para minha pele e vejo assim que ‘tá’ meio flácida, cheia de ruguinha, me es- panta ao ver que não era assim. A mão, a pele vai ficando fina. Ah, tem uma bolsinha aqui, esse negócio não tinha. Mas tudo bem né, faz parte da história da gente.” Contou como não se sente à vontade com as pessoas de sua idade, por terem gostos e perfis tão diferentes e como suas escolhas de vida são constantemente questionadas. “Para que fazer faculdade?”, “Para que pintar o cabelo de azul?”. Diz que a conversa ‘rola’ mais solta com pessoas mais jovens.

Sua trajetória em São João del-Rei é cheia de perdas e descobertas. Disse que aqui, já perdeu um cachorro e três gatos. E, com a voz embargada, conta também da perda do filho. Fala, sabiamente, que a vida, ao mesmo tempo é tão frágil e tão forte.

A cerâmica é considerada por ela um dos maiores ganhos da cidade. Os olhos brilham ao contar
que, na mesma manhã, horas antes de chegarmos, chorou de emoção ao refletir sobre a cerâmica. Como da lama, do barro, coisas tidas como sujas, algo extraordinário pode ser retirado. “O processo dela é como o nosso. A gente vai tirando as coisas feias, que não gosta, se lava, limpa e depois se modela, constrói. Depois passa pelo fogo, que queima tudo e dali sai uma coisa maravilhosa, que você fez! Você pensou um dia, teve um desejo, entendeu um projeto e fez.” Para além da alma de artista, Geralda também carrega uma história de luta. Filha de um militar atuante da repressão, fala sobre a vergonha que carrega. “Nunca ninguém levantou a voz para dizer que é filha de um torturador. É uma dor muito grande e uma vergonha imensa.”

Em contra-partida, começou desde cedo a se envolver em movimentos pela anistia e mais tarde, no movimento feminista. Desenvolveu um projeto em que, por meio do bordado e da contação de histórias, buscava o empoderamento de outras mulheres. “Descobri que quando você chega para uma mulher e fala que seu marido a oprime, ela responde: não, de jeito nenhum. Mas, quando você conta a história da princesa que beijou o sapo, questionam porque a princesa teve essa atitude. A mulher tem que aceitar aquela coisa feia, que vem para ela e, se cuidar dele direitinho, vai virar um príncipe? Ah, me poupe né?!”. Reflete, ainda, sobre o longo caminho que ainda temos que percorrer, por uma existência mais justa. “As pessoas às vezes falam “feminismo para quê?” Porque é necessário! É onosso espaço, nosso respeito, nossa dignidade, nossa diferença! O mundo é todo masculino, e eu acho que o mundo tá uma merda.”

A mulher tem que aceitar aquela coisa feia me poupe né?! Conversamos um pouco mais e logo a entrevista se encerra. No lugar mais inesperado, encontramos uma senhora verdadeiramente mágica. Como a Lua Minguante, não há nada de velho nela, mas na realidade um poço tão profundo de sabedoria que não tem dimensão. Como a própria disse: “enquanto estamos vivos, não estamos velhos para nada”.

Texto/VAN: Rafaella Azevedo e Samara S.M
Foto/VAN: Rafaella Azevedo

Deixe comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.