Diálogo dos Saberes – Opinião: A quem agrada os sistemas alimentares?
Por Igor Chaves

Um tomate. Foi o que Jorge Furtado precisou para escancarar os déficits sociais e ambientais da sociedade brasileira ainda em 1989, quando assinou o curta-metragem Ilha das Flores. O tomate é um fruto cultivado pelo Sr. Suzuki, é vendido, comprado e descartado pela Sra. Anete — rejeitado por estar podre. Ele, que já foi moeda de troca no mercado formal, acaba no lixão da Ilha das Flores, onde é separado: o que ainda pode ser aproveitado é dado aos porcos; o resto, o que nem mesmo os animais consomem, é destinado a mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade.
Em 15 minutos, Jorge Furtado demonstra a hierarquização dos corpos e a perversidade de um sistema em que o consumo, o descarte e o acesso ao alimento são mediados pelo valor econômico, e não pela dignidade. Quase 40 anos depois, esse retrato permanece atual e pode ser relacionado a práticas cotidianas de descarte ilegal e problemático de lixo, que fazem parte de um sistema alimentar desigual, excludente e insustentável. O destino do tomate apodrecido em Ilha das Flores não é muito distinto daquele de tantos resíduos orgânicos e recicláveis descartados diariamente em municípios brasileiros, onde a ausência de políticas públicas estruturadas agrava problemas ambientais e sociais.
São João del-Rei é um exemplo dessa realidade. A cidade ainda destina seu lixo para um aterro controlado, não regulamentado. Embora iniciativas estejam em curso, como o fortalecimento da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis (ASCAS), também têm surgido espaços de debate e articulação de soluções, como o Fórum de Economia Circular (FEC) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) , promovido pelo Enactus em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente. Tentativas de implantação da coleta seletiva seguem enfrentando diversos obstáculos, que vão desde a falta de recursos até a ausência de cultura ambiental e corresponsabilidade social por parte da população.
Esse modelo propõe uma lógica oposta à do descarte: em vez de extrair, usar e jogar fora, a economia circular busca preservar recursos por meio do reuso, reciclagem, compostagem e redesign de produtos, promovendo um sistema regenerativo e menos dependente da exploração intensiva de matérias-primas. Trata-se de uma visão que exige a integração entre economia, ecologia e justiça social.
Ao retomarmos a noção de sistema alimentar, é fundamental compreender que ele não se restringe à produção de alimentos, mas envolve também o transporte, a comercialização, o consumo e o descarte. Nesse sistema, o desperdício e o lixo não são acidentais: são produzidos estruturalmente por lógicas que priorizam o lucro, o consumo veloz e a desigualdade no acesso. Alimentos descartados, resíduos orgânicos não reaproveitados, embalagens não recicláveis — tudo isso revela as brechas de um sistema alimentar que não é nem sustentável, nem justo. No próprio FEC, o professor de economia da UFSJ, Jean Carlos Machado, destacou que “a economia circular, ela vem através da reflexão assim: primeiro tentar evitar gerar resíduo; a gente vai gerar, então reduzir”.Nesse contexto, a discussão ambiental é entendida como inseparável de outras dimensões estruturais, como a justiça social, a cultura e, especialmente, a segurança alimentar e nutricional. Sem essa abordagem integrada, o lixo continuará sendo expressão visível da exclusão. Questionar o destino do lixo é, portanto, questionar o destino das pessoas, e assim como em Ilha das Flores, o que é rejeitado não é por acaso.