São João del Rei no coração e o mundo debaixo dos pés
A artista plástica Zélia Mendonça participa da XIX Bienal de Cerveira, em Portugal, e revela suas influências e motivações.
Zélia Mendonça não esconde que deseja aquecer o mundo com cores vivas. Suas obras, ao provocarem aproximação e distanciamento, chamam atenção para cada detalhe cotidiano ao mesmo tempo em que permitem uma reflexão maior. É com este empenho que ela chegou a Portugal para participar da XIX Bienal de Cerveira, que acontece entre os meses que vão de julho a setembro.
A artista sanjoanense foi contemplada por um concurso internacional, que procurou obras inovadoras e das mais variadas tendências sob o tema “Da Pop Art às Transvanguardas, Apropriações da Arte Popular”. Com o título “Chica Chica Boom Chic”, levou um quadríptico (espécie de quatro imagens que dialogam) de Carmem Miranda trabalhado em assemblage, colagem de papel e pintura. “É óbvio não me escapa a dimensão pós-colonialista desta atuação da cantora e atriz. Mas sua existência tem a positividade do conceito antropofágico brasileiro de Oswald de Andrade”, explica e revela: “Pretendi instaurar um nomadismo de ideias e um engajamento indefinido na abordagem que se faz da identidade nacional brasileira, que era também uma exigência do concurso essa questão de identificação”.
Contudo, não é a primeira vez que Zélia Mendonça atravessa o oceano. Ano passado ela participou de uma residência artística também em Cerveira e fez várias exposições coletivas no Porto, Paris (França) e Nova York (Estados Unidos). Além de outras tão importantes quanto em Belo Horizonte, Tiradentes e São João del Rei. Afinal, apesar de ter aprendido tantas coisas e feito muitos amigos em suas viagens, é para o Campo das Vertentes que ela sempre retorna. Nessa entrevista, ela conta como é essa “coisa de artista”, de querer transformar o particular em universal.
Como a arte entrou na sua vida, Zélia?
A arte, pra começar, nasceu em mim. No dia em que nasci papai do céu falou assim: a arte vai correr no seu sangue. Minha mãe era artista… Eu não tive para onde fugir, ainda bem… Meio a tantas coisas maravilhosas que ela fazia eu me enchia de encantamento, meus olhos brilhavam e me convenciam das coisas lindas que aconteciam quando a gente faz arte.
De onde vem a sua inspiração?
Do cotidiano. Faço da arte a lida de todo dia. Ela está dentro de mim e eu a vejo nas pessoas o tempo todo. Eu gosto de pessoas, eu adoro pessoas. Adoro conversar, conhecer seus universos, aprender o que cada um tem dentro de si. Por isso digo que a minha arte é a do cotidiano, ali, do dia a dia…
E as influências? E o que tem te encantado em arte?
Bom, além do meu dia a dia, da vida, de tudo que acontece ao meu lado (risos), eu gosto muito de Picasso, Rodin, Portinari… Guaglia, Fernando Pacheco, Sérgio Machado… Gosto muito de vários artistas brasileiros… Eu admiro demais também o trabalho da Shirley Paes Leme… São muitos, mas mexe muito comigo, de forma especial, o trabalho de Bispo do Rosário.
Você destaca algum momento importante na sua carreira?
Como? Todos os momentos são importantes, são encontros preciosos. O hoje é sempre o mais importante.
Você fala muito do seu fazer cotidiano e tem viajado bastante, como isso afeta a sua obra?
Com certeza minhas viagens, minhas exposições no exterior afetam o meu trabalho… Mas também afetam meu cotidiano no sentido de também fazerem parte de uma rotina. Não há essa ideia de rotina apegada a um lugar. É onde eu vejo tudo que conta na minha obra. Então as viagens influenciam muito. Por exemplo, quando eu fiz a residência em Cerveira estava no auge de toda aquela polêmica da imigração na Europa… Todas aquelas histórias, as pessoas morrendo, aquela dificuldade toda, como o caso daquele médico que tinha dez crianças à bordo de um barco e ele pedindo socorro, socorro, e ninguém fez nada… Então influencia… Minhas obras que fiz naquele período abordaram esse tema da imigração e também os sentimentos humanos que vem com ela, os posicionamentos… Depois, fiz também uma exposição na França, em Montreuil, onde acabei trabalhando com refugiados. Então, como você vê, meu dia a dia é inquieto (risos).
Fale sobre a sua técnica.
Minha técnica é assemblage (colagens com objetos e materiais tridimensionais), mas estou sempre misturando com alguma coisa que vejo da arte contemporânea pelo mundo. Então ela está meio que em mutação, sempre trago algo novo. E como gosto de trabalhar com denúncias, por exemplo como a minha obra em que denuncio a antecipação do mundo adulto na vida das crianças… Acho que a técnica também é a denúncia. Eu quero que as pessoas saibam de onde eu vim, o que estou fazendo, qual a minha obrigação… A técnica aponta para o trabalho e para o que nós somos.
E os desafios de se fazer arte no Brasil?
Os desafios da arte brasileira são muitos. Se for enumerar eu vou ficar aqui dois ou três dias… Porque infelizmente nós não temos apoio. Temos que nos fazer por nós mesmos, investir de uma forma que nos faça respeitar o tempo todo. É sempre uma luta maior do que a que vejo em outros países. Aqui ainda lutamos por um lugar. Não tem nada que possa facilitar ao artista mostrar seu trabalho. A reflexão sobre o país, sobre a sua cidade é um trabalho muito importante que o artista faz e, no entanto, não temos este espaço se não estivermos sempre brigando por ele. Então de todos os desafios, eu destaco o respeito. Sermos respeitados e termos voz, que possamos ser ouvidos, esse é o maior desafio.
Texto/Van: Daniela Mendes