Por Igor Chaves

O Guia Alimentar para a População Brasileira foi reformulado em 2014 – Foto/Reprodução Revista Nutri Online

Na última terça-feira, 9, o Ministério da Saúde promoveu o 2º webinário em celebração aos 10 anos do Guia Alimentar para a População Brasileira. Sob o tema “Guia Alimentar 10 anos: o Guia e a promoção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis”, a Coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Kelly Alves, a engenheira agrônoma e integrante do setor de produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Carla Bueno, e o integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Julian Perez, entraram ao vivo no canal da DataSUS, no YouTube, e conversaram sobre como o Guia se faz essencial frente ao processo de desmonte enfrentado pela pluralidade alimentar nacional. 

Originalmente publicado em 2006, o Guia apresenta diretrizes alimentares oficiais para a população nacional, tendo por objetivo a promoção da saúde da sociedade como um todo. Reformulado em 2014, após consulta pública, consagrou-se como um documento federal, abordando os princípios e as recomendações de uma alimentação adequada e saudável para o povo brasileiro. 10 anos depois, o Guia e seu escopo se fazem mais necessários do que nunca, após os diversos sistemas alimentares brasileiros perderem espaço perante ao surgimento de um único e hegemônico modelo de consumo, mais “mecanizado”, pouco sustentável e industrializado, geralmente encabeçado por um setor primário que privilegia a cultura de exportação. 

SISTEMAS ALIMENTARES

Um sistemas alimentar, como apresentado por Kelly Alves, “compreende a complexa cadeia de processos e de atividades que envolvem a produção de alimentos, o seu processamento, o transporte, a distribuição, a comercialização, o consumo e também o manejo e o descarte de todos os resíduos que foram produzidos em todo esse trajeto”. As formas como esses diferentes processos que compõem essa cadeia ocorrem podem promover bem-estar, saúde, justiça social e proteger o meio ambiente, mas, quando executados irresponsavelmente, também podem agravar as desigualdades sociais, degradar a natureza e incentivar, mesmo que indiretamente, o adoecimento populacional. 

Fatores Influenciadores do Sistema Alimentar –
Foto/Reprodução Sustentarea, Núcleo de Pesquisa e Extensão da USP

No Brasil, os sistemas alimentares possuem caráter territorializado, variando de acordo com as condições de cada região e com a cultura de cada comunidade. Para Carla Bueno, a forma tradicional de alimentação brasileira é biodiversa, mas vem sendo enfraquecida cada vez mais por uma cultura de produtividade monótona e superfaturada: “Esse sistema alimentar está em constante ameaça por um outro [sistema alimentar], que vem sombreando essas raízes da cultura alimentar brasileira, que é o sistema alimentar proposto pela base produtiva do agronegócio no Brasil e que se consolida a nível internacional pela hegemonia do sistema financeiro ligado às indústrias de produção de alimento”. 

Ao longo do webinário, Julian também questionou o poder soberano do agronegócio, que se debruça sobre o cultivo de “produtos alimentares”, ao invés de alimentos. Ele apontou que cerca de 80% das áreas cultivadas no Brasil estão ocupadas por três culturas, soja, milho e cana de açúcar, produtos que subsidiam uma produção baseada em agrotóxico e uma agricultura voltada para comércio exterior, responsável por compor a base de alimentos ultraprocessados – famosos por possuírem mais tempo de prateleira e percorrerem maiores distâncias, limitando o espaço disponível para o cultivo de culturas capazes de compor uma dieta diversa e saudável, como proposto há 10 anos pelo Guia Alimentar.

RESPALDO GOVERNAMENTAL

Em contramão a esse processo, o Governo Federal aprovou entre o final do ano passado e o início de 2024 duas medidas que promovem não só a segurança alimentar, como também garantem o direito à alimentação saudável. A PNAAB, Política Nacional de Abastecimento Alimentar e a nova cesta básica integram o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, e visam fomentar a agricultura familiar e a sociobiodiversidade, colocando na mesa dos brasileiros alimentos in natura e minimamente processados. 

Para Carla, a PNAAB irá valorizar iniciativas populares de abastecimentos populares, além de minimizar o desregulamento dos preços causado pela pouca oferta no mercado: “Vai ser importante para regular preços, para o Estado conseguir atuar como Estado, e a gente não ficar completamente dependente do mercado, apenas dessa relação direta de oferta e demanda”. Quanto à nova cesta básica, Julian afirma que construir, a partir do diálogo do Governo com a sociedade civil, uma cesta básica que segue os princípios do Guia Alimentar para a População Brasileira é essencial para promover o direito humano à alimentação adequada. 

Kelly também recordou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), responsável por atender os mais de 40 milhões de estudantes da rede pública da educação básica. Desde 2009, é de caráter obrigatório o uso de no mínimo 30% dos recursos destinados ao PNAE para compra de produtos advindos da Agricultura Familiar promovida pela região de inserção da instituição de ensino. Já em 2020, as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira se tornaram parâmetros para definição dos tipos de alimentos que devem e não devem ser adquiridos com os recursos federais repassados aos estados e municípios. 

DIA DE FEIRA

Julian e Carla destacaram que todos esses processos de enfrentamento frente ao modelo hegemônico do agronegócio partem, principalmente, da feira, de sacolões e/ou de outras organizações comerciais agroecológicas, que diferem das grandes redes de supermercados. Sistemas alimentares locais, de circuito curto, compreendem experiências que vinculam produtores e consumidores, não se limitando a uma relação meramente comercial. 

Para Julian, a agroecologia vem como a base produtiva capaz de reorganizar os sistemas alimentares, não sendo só um novo modelo de produção, mas um mecanismo capaz de transformar as formas de produção no Brasil. Contudo, ainda é um modelo que demanda grande incentivo das políticas públicas, principalmente quando comparado ao sistema predominante: “Para a gente responder se agroecologia alimenta o mundo vamos minimamente fazer esse mesmo investimento público na agroecologia, para gente poder estabelecer um termo de comparação, senão nós estamos comparando um carro elétrico com carrinho de mão”. 

De volta ao Guia Alimentar para a População Brasileira, 10 anos depois do seu lançamento, Kelly, Carla e Julian apontam que ele ainda constitui a base para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e, cada vez mais, suas recomendações contribuem para a estruturação de políticas públicas que visam o bem estar da sociedade, o fortalecimento de regiões culturalmente diversas, o resgate do consumo alimentar territorialista e plural e, sobretudo, a saúde do povo brasileiro.