Diário de Negritudes
Vincent Otoni
Pego o ônibus com um ponto animado no fone de ouvido, sentindo a sintonia dos atabaques, me perguntando se esse tipo de música seria aceita em alto e bom som da mesma forma que um louvor é. Sei que a resposta é não, então não gasto tanto tempo me lamentando. Vejo um panfleto ou outro, uma chamada ou outra, convites e convocações para que a mudança aconteça, para lutarmos todos juntos. Acho bonito, poético, só não sei se acredito na veracidade. Sempre achei curioso como o assunto surge em novembro, assim como as luzes de Natal no fim de ano. Falando nisso, ano passado vi um Papai Noel negro no shopping. O pensamento me faz rir. De qualquer forma lá vai o Brasil de novo, lembrando durante uma semana ou um mês, se tiver sorte, dá luta que se apresenta pra mim todos os dias, não é como se eu pudesse esquecer.
A conversa passa por solidão, me vejo no trabalho quando desço do ônibus, respiro fundo pra começar de novo, vejo todos os dias a Igreja de Nossa Senhora do Rosário na minha frente. A Igreja dos pretos. Ouço todos os dias a mesma história de como meus ancestrais a construíram à luz da lua, entre suor e lágrimas, fora do horário de serventia aos seus senhores, que ainda eram vistos como bons por permitirem que eles tivessem como adorar uma religião que a princípio eles nem queriam. Quanta bondade. De qualquer forma a conversa era sobre solidão, o que é relativo, me sinto acompanhado todas as vezes que lembro quem guia meus caminhos, me sinto sozinho toda vez que atendo uma mesa, sirvo pratos chiques e nenhum dos clientes tem minha cor.
Me despeço do serviço, passo em casa pra tomar um banho e recebo uma mensagem do meu pai, me desejando uma boa noite, perguntando como estão as coisas, se já estou me preparando pra aula, lembrando que me ama. Assim eu me lembro que somos pessoas também, as vezes a armadura te deixa insensível, sempre preparado para a luta. Sinto a mensagem como um abraço. Assim eu me lembro que homens pretos também choram, enquanto trato de cuidar da pele que me ensinaram a odiar. Não aprendi essa lição bem, meu orgulho sempre falou mais forte. Termino de me arrumar, o banheiro ainda cheirando a arruda pelo banho de ervas. Ouço uma música leve, cozinho pensando nas responsabilidades que teria antes de dormir.
Pelo centro escuto um grupo discutindo sobre a necessidade ou não de cotas, ignorando a criança que vende doces no sinal, não preciso nem citar a cor. Não posso fazer muito hoje, compro uma bala, desejo uma boa noite, ganho um sorriso, retribuo com o meu. Cumprimento a senhora que sempre compartilha bons dez minutos comigo esperando a condução, ela sempre me encoraja a ir pra faculdade, mesmo quando não tenho energia, a cor também não é coincidência. Não me sinto sozinho agora. Me despeço pedindo proteção por ela também. Outro ônibus, dessa vez para a faculdade. Estudo sobre algumas teorias, converso, rio, me vejo tendo uma voz pela primeira vez no dia. Escrevo sobre isso. Pego o ônibus de novo, janto com calma assim que chego em casa, deixo algumas obrigações pra amanhã. Quando percebo o despertador toca, saio debaixo do cobertor, me preparo pra mais um dia.