Autoria de: Christopher Faria

Revisado por: Samantha Souza

Quero gritar. Quero poder gritar.

Lembro a primeira vez que fui calado. Eu era um “calado!”, velado por trás da voz de minha mãe ou de meu pai quando eu estava falando demais ou fazendo demais e eles me diziam um gentil (mesmo que na época eu não entendia o quão gentil isso era e ficava emburrado) “quietinho, filho!”. Ou do meu irmão quando ele soltava um “cala a boca!” nada velado e cheio de riso e boas memórias quando brincávamos juntos.

Estou falando da vez que queria falar algo que era importante para mim e me impediram. Negligenciaram-me, como se minha voz não fosse relevante.

É uma memória que machuca, porque, depois que você é calado uma vez, podem acontecer duas coisas: ou você aceita a mão sobre sua boca ou você se rebela, afasta essa mão e grita se for necessário.

Com 8 anos, nessa primeira vez, eu aceitei.

Uma coisa que não te contam é que não importa o quanto machuca ser silenciado, quando você aceita isso, as próximas não machucam tanto. E você começa a nem perceber que está sendo oprimido. A mão que cobre sua voz começa a suar e você começa a saborear o sal. Sem se importar que esse sal é jogado nas suas feridas, deixando-as maiores. Maiores, maiores e maiores.

Começa com um professor não respeitando sua opinião. Depois passa para você não sabendo como se posicionar para seus pais. Depois para amigos que riem de você e não com você. Depois para um namorado que não respeita suas vontades. Depois para um político que fala algo que não te representa, mas mesmo assim você acata. Depois para uma sociedade que fala, mas sem uma voz que pareça com a sua.

Parece um efeito cascata exagerado, mas ele é real. Começa com um simples “que pergunta burra” e acaba em “vamos cortar as verbas para as universidades”. Começa com um simples “tudo bem, era burra mesmo essa pergunta” e acaba em “não posso fazer nada contra esses cortes”.

Mas não cheguei nesse último nível. Em algum momento, felizmente, cansei. Senti a mão que cobria minha boca cobrir meu nariz também e de repente eu estava sufocado. Afogando com o suor. Foi em 2019. Com 16 anos. Quando alguém que tinha ideais que não eram as minhas começou a governar o país. Tudo o que senti foi dor e revolta. Por saber que eu não podia reclamar. Ele dizia que odiava pessoas que eram iguais a mim, e mesmo assim eu não podia reclamar. Ele incentivava ódio, mas mesmo assim eu não podia reclamar. Ele era o ódio, e eu não podia reclamar.

Porque eu sempre soube que ele era assim (até porque ele nunca fez questão de esconder). Eu sabia e não fiz nada. Não fui em nenhuma manifestação, nem sequer me desgastei escrevendo “#elenao” em minhas redes sociais. Não discuti com meus pais e amigos. Não falei nada para ninguém do que eu pensava sobre aquela candidatura hedionda. Mantive-me calado. Em silêncio. Acostumado com aquela mão.

Só percebi o quanto pessoas iguais a mim, acostumadas, havia contribuído para que isso acontecesse quando ele se elegeu. Passei noites me perguntando se seria diferente se todas as pessoas tivessem se rebelado contra essa mão. Eu sei que seria. E, decepcionado comigo, explodi.

Arranquei a mão, empurrei as pessoas que a mantinha firme sobre minha boca, e comecei a gritar.

Faz quatro anos que grito.

Faz quatro anos que fui aprendendo como gritar. Como ser ouvido.

Faz quatro anos que fui me juntando a vozes que se parecem com a minha para que possamos ganhar força.

E, sem dúvidas alguma, já tentaram me calar outras vezes.

E todas as vezes eu gritei mais alto.

Porque não quero mais engolir suor. Não quero mais ser sufocado.

Quero expor o que penso. Quero me juntar às causas que se importam com casos importantes. Quero incentivar outros “acostumados” a se rebelarem. Quero ter o direito de rebelar. Quero ter o direito de reclamar. Quero ter o direito de ser ouvido.

Quero poder escrever cartazes sobre política e tê-los pregados nas paredes de onde estudo porque defendem esse lugar, sem medo de que outras pessoas os arranquem ou os deturbem.

Quero sair nas ruas gritando “Não é balburdia, é reação. Os estudantes não têm medo dele não”, para que ele saiba que realmente não temos medo.

Quero ter orgulho de dizer que, mesmo se mais quatro anos de trevas paire sobre o Brasil, eu não fui conivente com nada disso. Eu lutei para que isso mudasse. Eu lutei para que outras pessoas tivessem coragem de gritar e se juntasse a mim para que nossa voz ficasse mais forte.

E não posso mentir.

Tenho medo.

Tenho medo de que as trevas se concretizem.

Queria poder dizer que é uma certeza sermos vitoriosos, mas não posso. Principalmente quando já perdemos tanto.

No primeiro turno dessas eleições, o dono das trevas ficou em segundo lugar por poucos pontos percentuais, enquanto todos os seus agentes ganhavam. Lutamos e gritamos tanto, mas mesmo assim tivemos o deputado federal com os ideais dessa treva mais votado de todos os tempos. Parte dessa treva se garantiu por mais quatro anos em muitos estados. Lutamos tanto e já perdemos muito. Tudo o que temos são pequenas vitórias e a esperança de que a maior derrota não aconteça dia 30.

É essa esperança que nos guiará para a urna. É ela que fará com que, mesmo se vencermos, continuemos lutando para que essa treva seja totalmente extinta. É ela que fará com que, mesmo se perdermos, continuemos lutando por um país melhor.

Quero ser representado por alguém que me deixe dizer que não estou bem com essa representação.

Quero ser representado por alguém que não zombe da minha existência ou sobrevivência.

Quero ser representado.

E não irei mais aceitar alguém me calando, alguém arrancando os cartazes que dizem o que eu penso, alguém que buzina para uma manifestação contra o que está sendo manifestado, alguém que menospreza o que digo ou que acredito, ou melhor, não me deixa dizer ou acreditar.

E farei de tudo para ajudar outras pessoas a não aceitar também. Porque aquele menino de 8 anos não podia, não conseguia, não tinha força e nem ajuda para virar para seu professor e dizer: “não existem perguntas burras, é meu direito ser respondido”; mas o homem de 20 anos que hoje sou pode, consegue – com suas próprias forças e com todas as alheias –, virar para seu presidente e dizer: “Você, não!”.