Médico Rodrigo Chávez destaca a relevância do diálogo sobre este ato que salva vidas

Por Cléber Lucas e Lídia Oliveira

Imagem: Reprodução/Câmara Legislativa – Distrito Federal

Doutor em Saúde Coletiva, com ênfase em Medicina de Família e Comunidade, Rodrigo Chávez Penha enfatiza a importância de pensar a saúde em um viés coletivo, humanizado e dialogado. O também professor do curso de Medicina da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) avalia o impacto positivo no que diz respeito à discussão social sobre questões que perpassam o convívio humano, como a vida em comunidade e a nossa relação com a morte e o luto. Visando a compreender de que modo esses e outros tópicos se ligam ao processo de doação de órgãos no Brasil e na região mineira, em entrevista à VAN, o médico esclarece dúvidas acerca da temática que caracteriza a campanha nacional Setembro Verde. Confira!

Estamos no mês da conscientização sobre a doação de órgãos, no entanto, esse ainda é um tema considerado tabu em muitas famílias. A quais fatores você associa esse estigma?

De início, a gente já está lidando com uma questão difícil. A maior parte das doações são vindas de cadáveres. Então, imagine você se aproximar de uma pessoa vivendo um luto intenso e falar que você quer remover os órgãos da pessoa falecida? E essa pessoa, às vezes, nem processou a morte. Acredito que nós precisamos aprimorar não apenas nossa abordagem da família enlutada e nossa abordagem das pessoas que querem doar, mas como sociedade precisamos discutir melhor a solidariedade, a morte e a perda. Principalmente, na minha opinião, valorizar essa cultura brasileira de carinho e cuidado que a gente tem uns pelos outros, que gerou o SUS e que a gente precisa agora expandir também para temas espinhosos e desafios intrínsecos como o transplante de órgãos.

Recentemente, o tema teve grande enfoque da mídia devido à condição de saúde do apresentador Fausto Silva, o Faustão. Houve muitos rumores sobre a fila de espera e bastante desinformação também. Você poderia explicar melhor sobre o funcionamento desse processo da fila de espera e do sistema nacional de doação de órgãos?

Sim, a desigualdade é um risco. Fausto Silva pode ter sido “beneficiado” com algo que queremos para todas e todos, como o acesso a um diagnóstico rápido, mas não podemos dizer que ele foi beneficiado pela fila de transplantes. Primeira coisa, a nossa política é muito acertada. O Estado precisa assumir a fila de transplantes para que órgãos e vidas humanas não sejam motivo de comércio.

A fila de transplantes é muito interessante, porque nem todo mundo entende que, na saúde, você não segue simplesmente uma ordem, não é a fila do pão, não é a ordem de chegada só. Existem três critérios que eu quero ressaltar. O primeiro é a gravidade do quadro que a pessoa apresenta. Toda fila de saúde vai respeitar a gravidade. Quem estiver com maior risco de morte imediata ou de uma sequela grave imediata à sua saúde, na sua vida, vai ser priorizado para procedimentos. A segunda coisa é a compatibilidade. Encontramos uma pessoa disponível a doar, cuja família autorizou a doação. Ela precisa ser compatível. Então, quando você fala desse segundo aspecto, nem todo mundo entende que a pessoa que passou na frente na fila, é porque o órgão que apareceu é mais compatível com o corpo dela. Por fim, a terceira coisa é oportunidade. […] Para isso, e isso eu também não consigo enfatizar o suficiente, você precisa de um corpo técnico, um serviço público de servidores qualificados, bem remunerados, com capacidade de reconhecer e resolver essas situações adequadamente. E as pessoas esquecem que os impostos são para isso. […] Mas a gente não precisa lutar contra o Fausto Silva no sistema de transplantes ou em qualquer lugar. A gente precisa lutar para todos termos as mesmas oportunidades. […] Então, acredito que a gente tem que reverter essa discussão toda pra uma luta por direitos em saúde e entender que a saúde tem aspectos sociais e políticos todos misturados, que a gente vai ter que conversar, em especial, quando se trata de transplantes de órgãos.

Minas Gerais, em 2025, possui mais de 4 mil pacientes aguardando por transplantes. Quais são, na sua experiência e perspectiva, os desafios desse procedimento hoje, especificamente, na nossa região?

O primeiro desafio de Minas é a gente conseguir unir a luta em torno de um Estado bom. Tem que ser eficiente, mas, principalmente, tem que ser eficaz. Tem que atender bem a população. O que me chama mais a atenção, em específico em Minas Gerais, é o tamanho do Estado. E nós temos aí o segundo problema que é a composição política de Minas, que são 853 municípios. Então, os diálogos ficam bastante complexos, porque são várias Minas. […] Então, a gente precisa, em Minas, lutar pelo Estado, olhar as várias Minas Gerais. […] A gente precisa de programas que interiorizem o médico, assistência em saúde, a enfermeira, o fisioterapeuta, toda essa estrutura lá para fazer isso, que reconheçam esse problema e que tenham toda a infraestrutura para deslocar para o centro urbano quando necessário. Para que a gente consiga, no nosso contexto específico, captar órgãos no tempo certo, ter o reconhecimento se já podem ser doados ou não, e conseguir fazer a transferência para as pessoas que precisam.

Voltando à questão da família, no final ela pode contestar essa decisão depois da morte desse potencial doador? E, se a pessoa quiser, como funciona esse registro da vontade de ser uma doadora de órgãos?

Então, afinal, a gente vai falar que é a justiça. Quem pode para a justiça? Mas é muito complicado você levar qualquer situação para um sistema de discussão legal quando você tem o tempo que aquele órgão dura e o tempo para a morte de uma pessoa que está esperando ele. […] Não é que a família tem direito absoluto, mas não é garantido aos doadores direito absoluto também, a família pode contestar. O cônjuge pode contestar mediante suas próprias convicções e sofrimento naquele momento complicadíssimo. Especialmente quando a gente pensa que, infelizmente, doações muitas vezes de acidentes agudos e eventos graves, a pessoa sofreu um acidente, e vendo a estatística, era jovem, do sexo masculino, e uma pessoa previamente saudável. Então, infelizmente, aconteceu essa tragédia e ela queria ser doadora de órgãos, porém vem uma família enlutada que não esperava por aquela morte e tomou uma série de decisões. É muito complicado!

[…] Para a pessoa manifestar a sua vontade individual de ser doadora, existem dois documentos que são destacados. O primeiro é a carteira de identidade. Se você desejar, você informa na sua carteira de identidade que você é doador de órgãos. Isso tem que ser dito na hora que você vai fazer a identidade. […] E a gente tem uma outra forma, não é tão conhecida, que é a autorização de doação de órgãos. Ela tem que ser registrada em cartório. Chama-se AEDO. 

Você acha que as propagandas, hoje em dia, referentes às doações de órgãos, conseguem ajudar em algo? Ou elas acabam indo para o nicho que já é doador?

A gente tem que analisar isso a partir de uma lógica que olharia o que ela tem feito durante o tempo. Então, se a gente olha para os dados de doação de órgãos, a gente vê que eles têm aumentado. No começo, lá em 2001, quando começa esse registro das pessoas que querem doar, há um aumento muito significativo. […] Antigamente, as pessoas olhavam poucos meios de comunicação. Hoje em dia, com a internet, o negócio ficou sério. Você tem rede social, tem site de notícias, canais pela internet. Então, eu acredito que o desafio continua o mesmo, mas diferente. O desafio é atingir todas as pessoas de uma maneira que elas entendam a questão, reflitam e motivem a ação, porque não é só informar. […] A forma como a desinformação chega às pessoas é muito rápida, então, além de desfazer essas fake news, tem que conseguir combater figuras públicas de grande alcance que divulgam valores equivocados.

Doutor Rodrigo, quantas vidas um potencial doador pode salvar?

Vamos dizer um doador cadáver pode ajudar em torno de 10 pessoas. Não vamos tirar vidas, pelo amor de Deus. A gente salva as pessoas. Então é importante fazer isso. Eu acho importante enfatizar que, por exemplo, existem doações que podem ser feitas em vida mesmo, não precisa morrer. Medula, por exemplo, as pessoas podem ir ao Hemocentro e fazerem testes […] fazer algumas análises para ver o tipo de doador ou doadora que ela é, para ver se uma ou outra pessoa pode ter compatibilidade e receber a medula dela. Ela não vai nem doar na hora, ela só vai entrar num banco de registro de medula óssea. E a gente tem, com muito mais facilidade, bancos de sangue do que hospitais super complexos ou bancos super complexos, nas cidades. Aliás, a gente tem o Hemocentro em São João Del-Rei. 

Quais orientações você considera essenciais para quem ainda tem dúvidas sobre ser um doador de órgãos?

Olha, a primeira coisa é elas fugirem das notícias falsas. Leu alguma coisa? Mesmo que seja do seu deputado de confiança, da sua médica, do seu médico. Consulte sites confiáveis. Um site confiável é o site do Ministério da Saúde. Dependendo da sua formação, você pode ler também artigos científicos. Temos várias bases de dados, como a base dos periódicos da Capes, que oferece muitos artigos livremente. […] Lembrar, então, que ela pode manifestar que é doador na sua identidade ou fazer esse procedimento no site da AEDO (Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano), deixar isso informado para a família, conversar isso em casa e com amigos, abordar com o seu médico […] A terceira coisa é lutar por um sistema de saúde que vai conseguir te acolher e que vai conseguir fazer a sua vontade ser respeitada. Não vai adiantar de nada se você discute tudo isso e tem um direito individual lindo se não tem um profissional qualificado, se não tem equipamento adequado, se está longe. E também, entre alguns aspectos que citei, por exemplo, lidar com essa dificuldade que a gente tem em discutir a morte.

“Nós temos que aprimorar o investimento no interior do país para captação de órgãos e para identificação de pessoas. Aprimorar para que os centros hospitalares estejam disponíveis perto de todas as pessoas que precisam, e aprimorar a formação das equipes, até de Atenção Primária e Saúde, na PSF, na sua casa, para que ele consiga conversar com as pessoas sobre doação de órgãos.”