Enquanto grandes eventos são celebrados pela vizinhança, o terreiro é forçado a fechar após pressão e denúncias, revelando tratamento desigual e preconceito velado

Por Ana Julia Barbosa, Lídia oliveira, Isabella  Emily e Yuri Henrique


O Templo Umbandista Caboclo Sete Flechas, localizado no bairro Matosinhos, em São João del-Rei, e conduzido pela Mãe de Santo Lunna Beaumontt, teve suas atividades suspensas por tempo indeterminado. Embora o fechamento ao público tenha sido oficialmente justificado por perturbação ao sossego, a situação revela um cenário que vai muito além de discussões sobre barulho ou convivência de vizinhança. O que ocorre ali expressa um conflito mais profundo, marcado por intolerância religiosa, silenciamento de práticas de matriz africana e tentativas de expulsar do espaço urbano aquilo que foge à normatividade cristã. Lunna expõe não apenas sua dor, mas também um histórico de apagamento que acompanha terreiros em todo o país.

Mãe Lunna em uma Gira no seu terreiro. Foto: Reprodução/Instagram @t.u.cabocloseteflechas

Fundada há cerca de três anos, a casa rapidamente se tornou referência local e regional, reunindo jovens, adultos, famílias e visitantes de diversos estados em busca de acolhimento espiritual. O crescimento não se deu apenas pela presença nas redes sociais, mas principalmente pela divulgação espontânea feita por quem frequentava o espaço. A maior parte dos filhos e filhas de santo tem entre 18 e 30 anos, muitos deles afastados de ambientes de vulnerabilidade, violência ou abandono familiar.

Com a visibilidade em alta, os conflitos também aumentaram. Reclamações inicialmente pequenas transformaram-se em pressões contínuas, sempre amparadas no discurso do “barulho”, mesmo quando o terreiro funcionava dentro das normas, com horários e dias definidos, sem atabaques em diversas ocasiões e respeitando regras de convivência. O contraste com outras atividades do bairro, especialmente as do estádio do Athletic Club, é evidente. Eventos esportivos e shows que se estendem por tardes e noites raramente geram manifestações públicas, enquanto o som ocasional de cantos religiosos foi suficiente para motivar vizinhos a acionar órgãos públicos, promover reuniões e exigir providências.

Para Mãe Lunna, essa diferença de tratamento escancara o que poucos admitem. “Se o barulho de um estádio de futebol não incomoda, mas o meu terreiro incomoda, a conta não fecha. Dois mais dois continuam sendo quatro”, afirma.

 O papel social do terreiro

Os terreiros de matriz africana são parte essencial da identidade histórica e cultural de São João del-Rei, pois representam a continuidade de tradições que ajudaram a constituir a cidade. Como afirma Lunna, “valorizar e proteger os terreiros de matriz africana é extremamente importante para preservar aquilo que a cidade leva como nome, cidade histórica”. Ela ainda lembra que a memória do povo negro, responsável por erguer igrejas, espaços urbanos e modos de vida, permanece viva nesses territórios sagrados. Em um município cuja riqueza foi construída com mão de obra escravizada, reconhecer os terreiros é reconhecer a história real, não apenas seus monumentos, mas as comunidades que mantêm vivos os saberes e espiritualidades que sustentam esse legado.

Além da dimensão religiosa, o terreiro desempenha importante função comunitária. Muitos jovens que o frequentam poderiam estar expostos a contextos de risco, como consumo de álcool, violência urbana ou acidentes, comuns na cidade. Para Mãe Lunna, é justamente a estrutura espiritual que oferece direção, disciplina e cuidado: “Um filho meu jamais estaria dirigindo alcoolizado, jamais estaria envolvido em certas situações. A religião dá rumo.”

O terreiro também acolhe casos graves de sofrimento psíquico. Pessoas em crise, após passarem por psicólogos, psiquiatras e outras tradições religiosas, encontraram ali o último recurso. Com acompanhamento espiritual, muitas recuperaram estabilidade e até passaram a atuar na própria casa, como uma das filhas que hoje oferece apoio jurídico ao terreiro enquanto exerce a profissão de psicóloga.

A atuação comunitária se estende às celebrações tradicionais. O terreiro alimenta centenas de pessoas em festas como as de Oxóssi e Cosme e Damião, distribuindo alimentos, bolos, sacolinhas, frutas e caldos preparados com recursos próprios e doações. 

 Os impactos da intolerância no funcionamento religioso

Segundo Lunna, inicialmente não havia qualquer reclamação sobre o som das giras, e ela mesma perguntava diretamente aos vizinhos. Mas, neste ano, surgiram episódios de invasões, deboches e denúncias infundadas, como quando um vizinho entrou no portão sem ser convidado e imitou o Espírito de forma pejorativa. A hostilidade tornou-se ameaça direta quando outro afirmou que “de um jeito ou de outro, seria resolvido, até mesmo de entrar e atirar”. Esses episódios levaram ao fechamento temporário do terreiro por medo, apesar das diversas tentativas de boa convivência.

Comunicado postado nas redes sociais do terreiro. Arte: Reprodução/ Instagram @t.u.cablocoseteflechas_

Há ainda perseguições veladas e vigilâncias constantes, como quando Lunna relata ter flagrado uma vizinha gravando o terreiro pela janela, além de pressões sobre a proprietária para que não renovasse o contrato da casa. Tais comportamentos reforçam o cenário de racismo religioso, especialmente quando vizinhos alegam que seus filhos não podem ouvir determinadas práticas, afirmando que eles precisam crescer em um ambiente adequado às crenças da família.

O resultado é um estado permanente de vulnerabilidade. Lunna comenta que “essa decisão de fechar o terreiro é embasada na questão do medo.” Ainda assim, ela insiste na necessidade de manter viva a fé da comunidade e buscar condições dignas de culto, apesar das barreiras territoriais, sociais e institucionais: “A gente vive uma faca de dois gumes, onde o preconceito é a estrutura maior”.

A perseguição invade a vida privada

Uma publicação de Lunna nas redes sociais, na qual questionava o tratamento desigual entre o terreiro e o estádio, foi interpretada por vizinhos como ataque pessoal, mesmo sem citar nomes. As reclamações chegaram à proprietária do imóvel, gerando constrangimentos e restringindo as possibilidades de defesa. Processar os agressores poderia trazer prejuízos à dona da casa, que sempre a apoiou. Ao mesmo tempo, mudar-se é arriscado, pois muitos proprietários recusam alugar imóveis a terreiros de Umbanda, enquanto outros só aceitam até descobrir do que se trata, o que pode resultar em despejos e insegurança permanente.

Lunna questiona: “Para onde eu vou? Se eu disser que é um terreiro, aceitam? Vão me expulsar depois? E se eu não disser? A vizinhança vai me garantir que não vai ter problema?”. Isso evidencia que o direcionamento constante das religiões de matriz africana para as margens cria uma realidade em que praticar a fé se torna um exercício diário de resistência.

Um trabalho de formiguinha

A sacerdotisa também evidencia o impacto econômico positivo da prática religiosa. A compra de ervas, velas, flores e itens rituais movimenta mercados, floriculturas e lojas umbandistas da cidade. Festas tradicionais, como as de Oxóssi e Cosme e Damião, chegam a distribuir centenas de refeições e doces, fortalecendo vínculos comunitários.  

Mesmo diante das dificuldades financeiras após a suspensão dos atendimentos presenciais, Lunna reafirma seu compromisso com a comunidade, reforçando a importância de dar visibilidade às religiões de matriz africana e de enfrentar narrativas deturpadas. Nesse viés, ela propõe “um trabalho de formiguinha”, no qual cada pessoa contribui combatendo a desinformação, apoiando a comunidade e pressionando autoridades para que os terreiros recebam tratamento justo.

Por fim, uma crítica é feita aos discursos incoerentes que se apresentam como cristãos, mas que violam princípios básicos de compaixão e convivência, chegando a ameaçar ou prejudicar pessoas vulneráveis. Para Lunna, defender o direito de existir com dignidade é parte essencial tanto da fé quanto da ação social do terreiro.