Alunas se unem para enfrentar as agressões contra a mulher no ambiente universitário

Por Elaine Cristina Maciel e Joyce Stampini

Mulheres ainda são em menor número nas Engenharias, conhecidas como “curso de homem”.  Foto/Mulheres na Universidade: Agnes Monteiro

“Era um dia de muita chuva em São João del-Rei e eu estava numa festa numa república bem conhecida na cidade. Eu frequentava muito essa casa, desde quando era caloura, porque me considerava amiga dos meninos que moravam lá. Inclusive, a primeira festa de quando entrei na Universidade foi nessa república. Nesse dia, eu estava bêbada e não queria mais ficar na festa. Mas como a chuva estava muito forte, eu também não tinha como ir embora naquela hora. Então, chamei um amigo meu, o Felipe*, e pedi a chave do quarto dele pra ficar lá nesse tempo. Como era uma casa muito antiga, eu não consegui trancar a porta e acabei dormindo. A única pessoa que sabia que eu estava lá era o Felipe. No meio da noite, ele foi pro quarto e lá ele me estuprou. Eu não estava no clima e ele insistiu, foi forçado. Ele ainda fez uma tortura psicológica comigo e me deixou trancada até o outro dia de manhã, porque ele me dizia: ‘Tá todo mundo acordado ali fora. O que eles vão pensar de você saindo do meu quarto?’.  Eu estava muito constrangida, porque conhecia todos os moradores. E estava nervosa. Na hora, não sabia que aquilo ali tinha sido um estupro, uma agressão. O Felipe ainda me levou em casa quando amanheceu, e eu estava me sentindo muito mal, então mandei mensagens para as minhas amigas contando o que tinha acontecido. Elas me falaram: ‘Milena, isso foi um estupro. Você precisa denunciar agora’.”

Isso é o que nos conta Milena*, aluna que estava no Curso de Administração da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) na época da violência. O relato da estudante, infelizmente, não é caso isolado no ambiente universitário.

Segundo informações de uma pesquisa de 2015 do Instituto Avon em parceria com o DataPopular, 67% das mulheres foram vítimas de violência cometida por um homem nas universidades ou nas festas acadêmicas. Já 42% das estudantes estiveram em uma situação na qual sentiram medo de sofrer violência.

Entre os universitários do sexo masculino, 38% admitiram ter cometido alguma violência, como assédio sexual, coerção, violência sexual, violência física, desqualificação intelectual com base em gênero e agressão moral ou psicológica. A maioria dos entrevistados de ambos os sexos acredita que as faculdades deveriam criar maneiras para punir os responsáveis.

A situação não se restringe à Federal de São João del-Rei. A estudante Joana*, que estuda na cidade de Ubá, também passou por agressão.

“Eu tinha chegado há pouco tempo e fiz amizade com um grupo. O Augusto* sempre estava junto. Ele era bem legal e eu gostava dele como amigo. Mas os homens têm a mania de achar que, se você é legal, é porque está dando mole. A gente tinha um relacionamento de amizade. Numa calourada, estávamos todos juntos bebendo e, na hora de ir embora, ele disse que queria me beijar. E eu disse que não queria, e uma ‘amiga’ em comum ficou insistindo. Ainda assim, eu disse que não. Então, Augusto me beijou totalmente à força, duas vezes. Na segunda vez, ele até segurou meus braços com muita força, mas, em momento algum, eu o beijei de volta. Depois, soube que o assunto foi comentado na faculdade e, até hoje, não sei como, porque não contei pra ninguém, apenas para o coordenador do curso. Foi desgastante demais para mim”, relata.

Autoras anônimas – Arte/Mulheres na Universidade: Rafael Senna

Sem punições

Na UFSJ, o que acontece com o agressor quando uma aluna denuncia uma situação de violência? “O nosso regimento interno tem que ser alterado, porque não há qualquer punição a quem cometa qualquer ato contra a dignidade humana. O máximo que conseguimos fazer sem a dosimetria [medida que determina a gravidade da agressão] é a advertência. Não temos suspensão, nem desvinculação”, explica o vice-reitor Marcelo Pereira de Andrade.

A ausência de punição muitas vezes prejudica a denúncia que deveria ser realizada. A ex-aluna do curso de Ciências Econômicas da UFSJ, Camila* relata que passou por situações de assédio antes de se formar e não denunciou com medo de sofrer represália nas aulas. “Alguns professores nos colocam em uma posição desagradável. Alguns convidam para um café, mas só chamam alunas mulheres. É muito estranho”, desabafa.

No caso de Milena,  a estudante procurou a Delegacia de Polícia Militar de São João del-Rei, onde foi encaminhada para a Polícia Civil. Segundo a estudante, Felipe foi detido, e ela passou o dia todo na delegacia para fazer o exame de corpo de delito: “O delegado e a psicóloga foram péssimos comigo. Eles não acreditavam que havia sido um estupro, porque eu estava no quarto e na casa dele e eu quem tinha pedido para entrar”.

A aluna conta que sofreu muita pressão dos amigos de Felipe e do próprio delegado para retirar a denúncia. “Eu não estava me sentindo segura para seguir em frente. E é algo de que eu me arrependo muito hoje em dia. Tive que mudar minha vida toda depois disso, de curso, de casa e de amigos”, relata.

Milena fez terapia e, atualmente, consegue falar sobre o assunto. “É importante [contar], porque eu sei que acontece muito aqui em São João. Várias amigas minhas já sofreram violência. Hoje em dia, sou militante e feminista, participo de um coletivo que trabalha com isso diariamente”, explica ela.

Enquanto medidas de punição não são criadas pela Universidade, as alunas fazem o possível para proteger umas às outras. Exemplo de organização que une forças contra a violência é o Coletivo Carcará, o qual realiza oficinas, rodas de conversa e manifestações na cidade. Segundo os membros, o coletivo busca dar espaço às minorias, principalmente à questão de gênero, e estimular  a reflexão e discussão quanto ao papel da mulher.

O Grupo Dandara também busca reunir mulheres para enfrentar questões de gênero, de classe e raciais. Formado por mulheres negras e feministas, o Dandara existe desde 2013. Segundo Cléo Souza, integrante do grupo, a ideia surgiu com uma performance realizada denominada ”A carne mais barata do mercado”. “Então, o grupo foi se afunilando para a questão mais específica da mulher negra, com o entendimento de uma enorme necessidade de discutir problemas relacionados ao racismo e machismo, principalmente, dentro e fora da Universidade e na comunidade”, explica Cléo.

Reunião do grupo Dandara em São João del-Rei. Foto/Arquivo: Facebook

Além dos coletivos, outra iniciativa que busca unir e empoderar o público feminino é o Jornal Delas. O veículo surgiu durante o segundo semestre de 2015, na disciplina de Planejamento Visual Gráfico do Curso de Jornalismo da UFSJ, que pedia um produto novo como trabalho de conclusão. O produto surgiu da insatisfação com o modo como a mídia hegemônica apresentava a mulher e as questões que a envolvem.

Atualmente, o Delas se tornou projeto de extensão da Universidade e realiza outras atividades de cunho feminista, como oficina de fotografia na Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) Feminina para empoderar as detentas dos regimes semiaberto e fechado.

Neste ano de 2017,  o veículo realizou um levantamento on-line e anônimo sobre os casos de assédio. “Nós acreditamos que o assédio dentro da universidade ainda é pouco abordado, já que admitir a existência ‘descredibiliza’ o ambiente acadêmico. Por isso, realizamos a pesquisa como forma de termos noção dos casos e podermos trabalhar para que isso seja cada vez mais discutido e abordado e, assim, erradicado”, esclarece a assessoria do Delas.

Um dos pontos levantados pelo Jornal Delas também foi a falta de segurança na UFSJ. Segundo a assessoria do Delas, a universidade faz muito pouco enquanto instituição. “Há muito mais a ser feito, desde melhorar a infraestrutura, como a iluminação no Campus Tancredo Neves (CTAN), até campanhas e folhetos que incentivem a denúncia de casos dentro e fora da instituição”, avalia.

Segundo o vice-reitor, na UFSJ, o sistema de patrulhamento foi reformulado recentemente e foram distribuídas cartilhas de prevenção a situações de violência. Além dessas medidas, estão sendo realizadas reuniões para construir uma comissão de debate e uma política institucional de segurança. “A gente está apostando muito na construção coletiva, com as necessidades vindo de baixo para cima. Temos que mudar a cultura, com uma política de conscientização”, afirma Marcelo.

“Isso é curso de homem!”

Outra forma muito comum de violência no ambiente acadêmico está na desqualificação intelectual, apenas pelo fato de a estudante ser mulher. Existe, na sociedade e na universidade, um preconceito de que um curso seja para homens e outro seja para mulheres.

Um exemplo é a lista de alunos convocados em primeira chamada de 2017 para o Curso de Engenharia Mecânica da UFSJ. Nesse curso, popularmente conhecido como “de homem”, apenas 12 de 100 vagas oferecidas são preenchidas por mulheres. Já no Curso de Pedagogia, das 50 vagas, 42 são preenchidas por candidatos do sexo feminino. Essa discrepância nos dados levanta o questionamento: numa sala de Exatas, majoritariamente composta por homens, as mulheres são respeitadas?

estudante Lorena Alves Vital Coelho, do Curso de Engenharia Elétrica, conta que a situação de desrespeito acontece.  “Em nenhum momento, eu passei pelo constrangimento dentro de sala de aula, mas conheço colegas que já passaram e, infelizmente, se submeteram a essa situação”, explica.

Ainda segundo a estudante, a presença feminina aumentou muito nos últimos semestres nos cursos de engenharia. “Nós [mulheres] não podemos pensar que não podemos fazer uma área de exatas. Infelizmente, muitas mulheres têm medo de estar num ambiente cheio de homens”, conta.

“Eu vejo meninas que têm essa facilidade com matemática, então a gente precisa acreditar em nós. A gente tem um domínio muito grande nessa área de raciocínio lógico.” 

–  Lorena Coelho, estudante de engenharia

Para incentivar as meninas são-joanenses a seguirem na área de Exatas, foi criado o projeto “Mulheres na Engenharia”. Com o slogan “Talento não escolhe sexo”, alunas da UFSJ  apresentam a Universidade e os cursos de engenharia para estudantes do ensino médio da cidade. Em atividade desde 2016, mais de 118 alunas já receberam o projeto.

Esse é o caso de Virgínia Inês Teixeira, 16 anos, que está no primeiro ano do ensino médio e deseja seguir na área de Exatas. “Eu sempre gostei muito de matemática e de construção. Aí meu pai me falou sobre a engenharia e eu fiquei apaixonada. Pesquisei como era a vida de um engenheiro civil e se havia mulheres nesse ramo por ser mais pesado… Mas vi que nada me impediria de fazer engenharia”, relata.

*Todos os nomes foram alterados, a pedido das entrevistadas, para preservar a identidade delas.

 

Coordenação e edição/Mulheres na Universidade: Janaina Barcelos
Editoração e artes/Mulheres na Universidade: Rafael Senna, Clara Rita e Agnes Monteiro
Texto Original: mulheresnauniversidade.wordpress.com

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