Por Ana Cláudia Almeida e Lívia Antoniazzi

Tecidos biodegradáveis, novas forças produtivas e empoderamento feminino. Esses são os três valores implementados no projeto VIES (Valores de Identidade e Expressão Social) inserido na APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) da cidade de Três Pontas (MG). A proposta do programa é a confecção de roupas íntimas sustentáveis pelas mulheres-mães que frequentam a associação, estabelecendo, através da moda, uma importante relação entre urbanidade, acessibilidade e sustentabilidade.

Logo do programa VIES da APAE de Três Pontas.
Logo do programa VIES.

O VIES nasceu de uma parceria entre a superintendente da APAE de Três Pontas e  diretora social da Federação das APAEs de Minas Gerais, Maria Rozilda Gama Reis, e a designer de moda Tássia Murad Abreu. A ideia inicial surgiu quando Tássia, cursando licenciatura em artes visuais em 2014, desempenhou um trabalho criativo com os usuários da instituição e se apaixonou pela experiência. Nos anos seguintes, após fazer um mestrado focado no tema em São João del-Rei, a designer entrou em contato com Maria e, no final de 2020, o VIES já ganhava forma, sendo oficialmente implantado em fevereiro de 2021. O projeto foi desenhado e planejado dentro de uma perspectiva política e educacional, almejando dar a oportunidade de desenvolver a criatividade, prazer e produtividade das mulheres responsáveis pelos assistidos da associação. 

Empoderamento Feminino

A relação entre as realizadoras do programa e as mães foi se tornando cada vez mais forte em torno de um dos propósitos maiores do VIES: o empoderamento feminino. Assim, a criação de um vínculo e de um imaginário coletivo, que ao mesmo tempo respeita a singularidade de cada uma, foi se aflorando. O processo de conhecimento das histórias e fortalecimento do grupo foi fundamental para toda a metodologia do projeto. Para Tássia, esse trabalho se tornou um de seus maiores orgulhos. “O VIES acaba sendo um resultado dessas minhas ambições, porque é um trabalho de moda com produto de moda, mas ele é mais do que isso. Ele é um produto simbólico, educativo e consciente, mais voltado para essa visão global de estar no mundo. (…) Desde então, eu venho desmistificando a moda muito voltada para o comercial e mais na atividade de colocar significado sobre o seu corpo e se comunicar com outras pessoas”, conta ela.

Novas forças produtivas

Ao longo dos meses, com a equipe de costura já formada, as mães passaram a participar conforme suas possibilidades. Uma das características do VIES é essa flexibilidade, permitindo que as mulheres se envolvam na confecção em horários adaptados às suas agendas, o que segue uma racionalidade produtiva que respeita as necessidades humanas e reais, e valoriza a presença e o bem-estar de todas. Nesse viés, Tássia aborda um outro princípio que suscitou sua iniciativa: novas forças produtivas. Segundo ela, com uma economia ecológica e uma quebra do paradigma de produção, o VIES busca se enquadrar às pessoas que não se enquadram no atual mercado capitalista de produção convencional. Realidade esta enfrentada por muitas mães de pessoas com deficiência (PCDs) que, embora vivam em lares vulneráveis sob condição financeira baixa, são limitadas a cargos de baixa remuneração devido ao benefício social voltado para este grupo. “Então, a gente está onde elas estão com o horário que é possível para que a gente consiga excluir essa marginalização. (…) A gente fala muito sobre a exclusão social da pessoa com deficiência, mas a gente esquece que as mães são um corpo estendido delas, que sofrem as mesmas coisas”, reforça Tássia.

Equipe VIES em sua oficina. Foto: Reprodução/Acervo pessoal – Tássia Murad

Coleções do VIES

Voltando ao movimento crucial de empoderar mulheres, tendo traçado o projeto no sentido de melhorar a autoestima, dar autonomia e suporte até mesmo para enfrentar violências sofridas (doméstica e/ou psicológica), a calcinha absorvente surgiu como um instrumento da designer. Tassia conta que, visando modificar a perspectiva negativa acerca da menstruação, a coleção Bio FLUXO (calcinha reutilizável, feita de tecidos biodegradáveis) já estava presente como principal linha de produção na primeira exposição do projeto na APAE: “Eu busquei por um produto que trouxesse essas questões femininas e, na época, eu tinha muita curiosidade em ginecologia natural. Então eu pensei: a calcinha absorvente vai melhorar esse contato com sangue, vai ser muito bom para elas se conhecerem, e bom também para outras mulheres que elas vão atingir. Quem for comprar o produto também vai começar a ter essa relação de mais orgulho”.

Em contraste com o planejado carro-chefe do programa, a segunda coleção, a nature PELE, resulta de um teste de tecido e uma impensada homenagem. Além de compartilhar a influência da mãe Margarida como inspiração para seu trabalho, Tassia menciona a sugestão e apoio dado pela superintendente da APAE para que tudo acontecesse: “Ela (a coleção) foi inspirada na minha mãe, que sempre falava: ‘Filha, essa calcinha aqui que eu adoro’. Minha mãe e tias são todas nomes de flores (…) e ela (a superintendente) falou: ’Vamos fazer uma para cada?’ (…) E aí surgiu a nature PELE, que é para lembrar dessa conexão nossa com a natureza”. Com um enfoque no público-alvo próximo, as calcinhas são produzidas em dois estilos específicos e em um tom rosado que não marca no branco, visto que o VIES está situado em uma instituição de saúde onde a maioria das mulheres veste essa cor.

Coleção bio FLUXO do VIES.
Modelos usando as calcinhas absorventes bioFLUXO. Foto: Reprodução/Acervo pessoal – Tássia Murad

No que se refere à confecção das peças, atualmente oito mulheres ativas no VIES se dividem em etapas e, assim, atendem quinze famílias. Com o então processo de corte terceirizado, as mães se encarregam das fases de costura e acabamento e, nesse sentido, são distribuídas de acordo com suas habilidades com as diversas máquinas. Tássia confessa que a realidade e o plano inicial do projeto eram outros: “ A maioria dos cortes a gente faz fora, mas já aconteceu de fazer ali quando alguma pessoa não pôde atender. (…) E ali (no espaço do VIES) a gente não tem essa mesa enorme de corte (a cortadeira), então  era tudo na mão. (…) Mas nossa intenção sempre foi de treiná-las para todos os processos, até porque tem mesmo essa característica de falta (devido ao filho(a)).” 

Sustentabilidade

Em síntese, fabricando peças de todos os tamanhos (P ao extra G) em versões de fluxo leve, moderado e intenso, o VIES demonstra sua preocupação em servir a um público feminino heterogêneo com gostos e necessidades diversos. Em paralelo, um compromisso com a sustentabilidade é reafirmado pelo programa por meio dos seus produtos, como também de suas embalagens. As calcinhas são confeccionadas com tecidos biodegradáveis ou que possuem artificialmente essa tecnologia e, são comercializadas sem etiquetas (descartáveis) envolvidas por uma pequena caixa de papelão (material reciclável).  Durante a entrevista, Tássia mostra detalhadamente os itens e cita que as instruções de lavagem e informações do produto e do fabricante são exibidas integralmente conforme exigido.

Imagem mostra detalhes sobre os benefícios da calcinha absorvente bio FLUXO.
Mais detalhes sobre os benefícios da calcinha absorvente bio FLUXO. Imagem: Reprodução/VIES

Por fim, Tássia relata um dos desafios de viabilizar o alcance das participantes ao retorno da produção. Dado que uma remuneração em dinheiro constaria um vínculo empregatício com o projeto e, assim, inaptidão para o benefício recebido do governo, medidas tiveram que ser tomadas. “Foi decidido pela gestão da APAE,  em conversa comigo, que a gente ia fazer um voucher no valor da produção para que elas consumissem no mercado aqui que tem de tudo. Então, por exemplo, a APAE pagaria o mercado com esse convênio e daria os vouchers naquele valor”. Com essa postura empática de intervenção, e também sempre com carinho e cuidado às situações adversas apresentadas pelas mulheres, o VIES atingiu e atinge o objetivo de ser um espaço, um acesso, uma oportunidade para que essas mães sejam vistas, escutadas, e principalmente para elas mesmas. Tássia conclui: “(…) É nesse sentido aqui de novas forças produtivas, é realmente terem essas pessoas em produção com o objetivo de redistribuição de renda, que elas fiquem participativas, produtivas e possam ter a fruição do resultado da produção delas.”

Serviço

Para saber mais, ligue para (35) 99707-0908