Desigualdades ainda afetam produção audiovisual no país
O cinema brasileiro é marcado por divisões evidentes: enquanto grandes produções recebem incentivos milionários, produtores independentes seguem de mãos atadas
Por Felipe Lopes, Ana Clara Reis e Vitor Costa

Apesar de conquistas recentes, como o Oscar para “Ainda Estou Aqui”, a estrutura do cinema nacional ainda reproduz desigualdades de investimento, visibilidade e acesso. A ilusão de que “o cinema nacional está sendo finalmente valorizado” pode mascarar a luta contínua de iniciativas independentes e marginalizadas para existir e resistir fora dos circuitos consagrados.
Em São João del-Rei, a desigualdade se materializa na própria programação dos cinemas. O Cine Glória, cinema local da cidade, exibiu Ainda Estou Aqui por mais de quatro meses, entre 7 de novembro de 2024 e 28 de março de 2025 — um período considerado atípico para produções nacionais. O sucesso de público foi contínuo, com sessões frequentemente cheias. No entanto, esse destaque não se estendeu a outras obras brasileiras. Filmes premiados em festivais como a Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada a menos de 200 km da cidade, sequer chegaram a entrar em cartaz.Wallace e William Itabohary, empresários à frente do Cine Glória há 12 anos, relatam surpresa com a repercussão de Ainda Estou Aqui. Embora celebrem o sucesso, lamentam o desinteresse do público por outras produções nacionais. Citaram como exemplo o filme Vitória, lançado pouco depois do vencedor do Oscar. Apesar da participação de nomes consagrados como Fernanda Montenegro e de uma produção robusta, Vitória “não fez nem cócegas”, nas palavras dos irmãos. Para eles, o caso ilustra como apenas uma fração mínima da população se engaja com o cinema nacional de forma mais ampla.

Os irmãos Itabohary também destacam um problema estrutural: muitos filmes são produzidos, mas poucos chegam ao público ou às salas de cinema. “Se produzem, por exemplo, setecentos, oitocentos filmes no ano”, apontam. Segundo eles, apenas cerca de duzentos chegam aos cinemas, e, no caso dos cinemas de rua tradicionais — como a maioria dos que existem no Brasil —, esse número cai para um ou dois. Essa limitação está diretamente ligada à falta de verbas públicas e de políticas de distribuição mais equitativas.
Durante a conversa, os irmãos ainda criticaram o direcionamento dos recursos públicos. Para eles, muitos dos agentes que recebem financiamento estão mais preocupados com o lucro imediato do que com a consolidação de obras e trajetórias. A prioridade por lançar novos projetos compromete a circulação e o amadurecimento de filmes já prontos, excluindo produtores comprometidos com a arte cinematográfica.
O caso de Ainda Estou Aqui também expõe outro fator decisivo: a cobertura midiática. Os irmãos Itabohary afirmam que o filme já recebia atenção da imprensa antes mesmo da vitória no Oscar, o que influenciou diretamente sua repercussão e bilheteria. O exemplo reforça como a visibilidade proporcionada pela mídia pode consolidar ou marginalizar produções, mesmo dentro do próprio cinema nacional.
Essa desigualdade também é sentida por quem está no início da carreira. Heitor Andrade, estudante de Jornalismo da USP e produtor de cinema independente há quatro anos, relata que os editais públicos — embora existam — são insuficientes para atender a toda a demanda da classe artística, especialmente no setor audiovisual. Além disso, os critérios de seleção favorecem quem já possui notoriedade ou influência, dificultando a entrada de novos profissionais no mercado. “Existe uma hierarquia muito clara desde a base”, explica. Essa lógica dificulta a inclusão e faz com que os mesmos artistas continuem sendo contemplados nos principais editais, perpetuando um ciclo vicioso.

Mesmo quando o trabalho é de qualidade, Heitor afirma que é comum o filme não alcançar repercussão nem espaço em festivais, realidade que dialoga diretamente com a crítica feita pelos irmãos Itabohary. Sobre o impacto do Oscar, ele comenta: “Para o artista independente, a coisa mudou muito pouco. O que mudou foi o interesse das pessoas pelo grande cinema”
Sem acesso a financiamento, Heitor realiza suas produções de forma coletiva e colaborativa, reunindo equipes para tirar os projetos do papel por conta própria.
Maria Antônia Quitanda, estudante de Cinema e Audiovisual da UFJF, reforça a crítica ao elitismo estrutural do setor. Ela destaca ainda a escassez de espaço para cineastas negros, indígenas, periféricos e mulheres, o que contribui para a repetição dos mesmos nomes nos editais — reafirmando o posicionamento de Heitor.
Maria Antônia também aponta a invisibilização dos projetos marginais e independentes pela imprensa: “Talvez, autores do cinema marginal e do cinema independente trazem temáticas que são mais polêmicas. Então, às vezes, a mídia não quer falar muito sobre, sabe?”, questiona.

O cinema sob outro olhar
Diferentes visões do cenário cultural nacional podem ser observados ao nos depararmos com artistas independentes que, em sua maioria, não têm um aporte financeiro para realizarem suas obras. Esse é o caso da sétima arte que tem uma diferente “relevância” entre a produção brasileira, a norte-americana e europeia, mas que, ainda sim, é protagonizada por grandes companhias que possuem um aporte financeiro. Essas discrepâncias estruturais podem ser observadas pela pouca frequência de obras independentes no cinema tradicional, por falta de recursos em suas produções e valorização do público geral.
O cinema independente enfrenta limitações, desde a formação de obras até a divulgação desses filmes e cineclubes, como é o caso do Coletivo Cinema na Rua, que ocorre em São João del-Rei, idealizado por Ana Lua Ferreira e Pedro Garbo. Os dois artistas relatam as dificuldades do cinema nacional em ser mais valorizado e como o coletivo tem sido meio de resistência nas lutas por editais mais bem distribuídos. Espaço no cenário cultural institucional da cidade , democratização da cultura, exibição de filmes latinos e politizados e busca por uma melhor divulgação do cineclube, em entrevista, Ana Lua comenta sobre os maiores desafios de organizar um cinema que não tem apoio estatal ou privado – “É difícil também falar na tentativa de se produzir um cinema soberano, um cinema que se preocupe com si mesmo, quando não tem investimento, não tem as políticas públicas”, produtores independentes têm seu trabalho limitado em meio a falta de recursos financeiros e espaço no mercado, com problemas estruturais na política local que não garantem um amplo rol de oportunidades para estes criadores.

A necessidade de distribuição equânime de recursos para o cinema nacional é analisada por um dos organizadores do Cineclube Galeria e professor do curso de Jornalismo da UFSJ, João Barreto: “não existe acesso se não houver uma arte forte para que as pessoas acessem”. O produto deve ter presença na agenda local, haja vista a relevância do cinema enquanto arte que comunica a história de pessoas, culturas e instituições. O cinema nacional independente tem um caráter político muito forte na luta por um país mais justo e é ferramenta crucial nessas reivindicações.

Dentre as demandas citadas, está a necessidade de representatividade institucional. Pedro Garbo relata a falta de diálogo com as autoridades locais em relação à editais e projetos municipais, um obstáculo para os artistas locais que têm poucos recursos investidos em seus trabalhos, o que mostra que, apesar de incentivos como a Aldir Blanc, o artista se vê isolado enquanto produtor e sem a representatividade necessária para buscar melhorias em sua respectiva classe, que é tão ignorada das políticas públicas locais.
Uma das discussões mais relevantes a serem comentadas é a relação do brasileiro com o cinema nacional de maneira geral e como o público local não tem se engajado para consumir as obras brasileiras, sejam elas independentes ou com vasto aporte financeiro. A falta de efetividade na divulgação desses projetos tem sido um empecilho no fomento dessas produções, é a documentarista Luisa Meinberg enfatiza em relação à essa questão e como o país enquanto produtor de arte não dá a devida importância para o trato final de seu produto, “Acho que é a parte mais difícil. É mais difícil do que fazer”, o que corrobora com as declarações anteriores de William Itabohary e Walace Itabohary sobre a necessidade de desenvolver o marketing desse produto a fim de chegar no público o trabalho desenvolvido por milhares de criadores.
Lei Paulo Gustavo
Criada para atender às demandas culturais decorrentes da pandemia de 2020, a Lei Paulo Gustavo vem fortalecendo a cena artística no país por meio de editais e financiamentos. Um exemplo é a oficina realizada pelo grupo Cine Vida, mencionada por Ana Lua e Pedro, que destacam a importância do apoio recebido por meio de um edital estadual da lei. Para eles, iniciativas como essa são fundamentais para ampliar oportunidades e garantir maior espaço para produções independentes no cinema nacional.

As demandas são inúmeras e urgentes, principalmente, sob o aspecto de valorização da cultura nacional que tem fortes embates com as influências norte-americanas e europeias na referência de produção audiovisual. É o que diz João Barreto ao comentar sobre os editais referentes à cultura e sua função enquanto agente social e cultural: “todo o grande movimento hegemônico tem sempre um movimento contra-hegemônico”. Para o professor da UFSJ, a arte tem o poder de fortalecer narrativas e trazer autoestima nacional, o artista tem o pincel da mensagem em suas mãos e a capacidade de materializar as riquezas brasileiras em suas produções e, por isso, deve estar nas principais discussões sobre a agenda nacional .