QUANTO FALTA PARA O PARAÍSO
A realidade das professoras universitárias: em menor número e fora dos cargos de liderança, elas ainda se sentem respeitadas
Por Ana Resende Quadros
A universidade tem, já na origem da palavra, um sentido de universalidade. Espaço de propagação de conhecimento, de debate sobre os rumos que devemos tomar no futuro. Por décadas a fio, a universidade foi, pelo menos em teoria, espaço de construção de um mundo melhor. Mas, a realidade é um pouco diferente.
“A universidade vive um momento em que professores e pesquisadores se prendem muito à produtividade. Isso talvez tenha estrangulado muito a universidade daquilo que ela foi, um espaço de grandes debates sobre questões essenciais para o avanço das concepções”, comenta o vice-reitor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Marcelo Pereira de Andrade.
O assunto surgiu enquanto conversávamos sobre um dado preocupante. Embora as mulheres sejam a maioria entre estudantes das universidades brasileiras – públicas ou privadas – essa proporção não se repete entre os docentes do ensino superior. De acordo com o Censo de Educação Superior de 2016, nos cursos de graduação do país, apenas 45,46% dos professores são mulheres. Esse número é ainda mais desigual na UFSJ, onde a quantidade de homens é 17,8% maior.
Mas qual seria a razão disso? Não pode ser a falta de formação. Segundo dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), as mulheres estão cerca de 7% mais presentes que os homens nos cursos de pós-graduação. Seria possível que estivéssemos condicionados, inconscientemente, a achar os homens são mais capazes que as mulheres?
“Não dá para generalizar. Mas, quanto mais você acha que as categorias gênero e raça não interferem nas suas escolhas, quanto mais você acredita nessa isenção, mais estamos submetidos aos preconceitos. Então, dependendo da área, as chances de cair nesse tipo de engodo é maior”, explica a professora do Departamento de Psicologia e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Gênero, Raça e Direitos Humanos (NEGAH) da UFSJ, Isabela Saraiva de Queiroz.
Um lugar de respeito?
Apesar da predominância masculina nos cargos de docência no ensino superior, os casos de desrespeito às professoras universitárias não acontecem com muita frequência. Ou, pelo menos, não são encontrados relatos facilmente.
“Uma única vez, presenciei uma situação em que uma professora de Física, no primeiro dia de aula, foi vestindo uma roupa cor de rosa e laço no cabelo, o que causou certo burburinho. Alguns meninos até chegaram a lhe perguntar sobre como era trabalhar no meio científico, prioritariamente masculino, mas, apesar da situação desagradável, a professora respondeu que sempre foi muito respeitada pelo seu trabalho e continuou a aula”, conta a estudante de Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Isabela Garcia.
Um ambiente onde a maioria dos trabalhadores são homens e, ainda assim, o desrespeito às mulheres é exceção? Parece um ponto fora da curva. Afinal, é exatamente a predominância masculina e o consequente medo do desrespeito que afastam as mulheres de algumas profissões, como no serviço industrial. “Quando eu fazia curso técnico, tentei trabalhar uma vez em uma empresa, mas eles não aceitavam fazer entrevistas com mulheres. Cheguei para fazer a entrevista e disseram que a vaga só podia ser preenchida por homens. Perguntei o porquê, mas não me deram nenhuma justificativa, e eu não pude fazer nada”, conta a estudante de Engenharia Elétrica da UFSJ, Lorena Santos.
Mas o que leva a universidade a ser um ambiente de mais respeito com suas trabalhadoras? Será que por estarmos acostumados a vermos mulheres nas áreas de ensino, mesmo em cursos nos quais a maioria dos alunos são homens, a presença de mulheres lecionando não nos parece incomum?
“Essa ideia de não estranhar porque a gente sempre teve professoras faz sentido. Mas eu acho que também tem muita naturalização das violências. Às vezes, tem uma piadinha machista, mas achamos que é normal, é só brincadeira. Achamos que não tem tanto problema assim os alunos ou os professores fazerem piadas sobre a sua roupa, seu jeito de andar ou o seu corpo. Ou seja, temos uma naturalização de processos que, muitas vezes, são invasivos, que podem ser nomeados como assédio moral ou sexual. Mas, até por esse processo de subordinação, muitas mulheres preferem silenciar”, explica a professora Isabela Queiroz.
“Nunca tive nenhum problema por ser mulher e estar à frente de uma sala de aula. às vezes, alguma piadinha sai, mas ofendendo todas as mulheres, não só as professoras.”
– Roseli Balestra, professora do Departamento de Engenharia Mecânica da UFSJ
Uma vez, durante um evento sobre o machismo na universidade, Isabela presenciou um relato de uma professora de Medicina Veterinária da UFMG que dizia nunca ter sofrido qualquer tipo de experiência com o machismo, mesmo atuando no meio de homens em fazendas. “Inicialmente, ela disse que nunca tinha sofrido, mas, em outra parte da conversa, contou que, quando se vai levar os alunos para fazerem estágio nas fazendas, eles ficam alguns dias. Na parte da noite, os colegas homens saem para comer com os peões e tomar uma cerveja, mas as mulheres não. Segundo ela, as meninas tinham que dormir mais cedo porque precisam se preservar. Só os meninos podiam sair. Quando terminou de falar perguntei se ela não percebia que isso era uma prática machista. Ela disse que não, porque, se as meninas fossem, elas seriam assediadas. Mas tudo é machismo: desde elas acharem que não convém ir até irem e serem assediadas”, ressalta.
Isabela conta que, apesar da isonomia de salários e da existência de editais amplos dentro da universidade, há diferenças no tratamento de homens e mulheres que, normalmente, não são observadas. “Não é nada objetivo, mas a gente percebe essas diferenças no modo como as pessoas determinam certos cargos. Os cargos mais altos na estrutura universitária são ocupados por homens brancos”, conta.
Mulheres no poder
Na Federal de São João del-Rei os cargos de comando estão, de fato, sob os cuidados masculinos. Apenas 36% das posições de liderança são ocupadas por mulheres..“Isso é reflexo até do Brasil. Quantas mulheres estão nos Ministérios? O Temer, quando assumiu, foi muito criticado por ter escolhido mais pessoas do sexo masculino que do feminino. Eu acho que a universidade reflete muito essa questão externa, que temos que trabalhar”, diz a professora Lane Rabelo, do Departamento de Engenharia Elétrica da UFSJ.
Atualmente, das sete pró-reitorias da universidade, apenas a Pró-reitoria de Administração e a de Gestão de Pessoas são geridas por mulheres. As pró-reitorias de ensino, pesquisa e extensão, que coordenam as atividades fim da instituição são comandadas por homens. “Eu acho que nessa gestão teve um problema de não ter nenhuma professora mulher ocupando uma pró-reitoria. É uma coisa que temos que repensar. Talvez tenha sido um erro na estrutura de equipe”, admite o vice-reitor
A professora Maria Ângela Araújo Resende leciona na universidade desde antes da federalização e observa que as mulheres raramente ocupam essas posições. “Eu percebo, nesses anos todos de faculdade, que houve uma preferência por dar esses cargos nas pró-reitorias de ensino, pesquisa e extensão para homens. Não acho que tenha sido intencional, mas causa estranhamento, porque há muitas mulheres capazes e competentes para assumi-los”, comenta.
Ainda nos tempos de FUNREI, Maria Ângela ocupou o cargo que hoje corresponde à pró-reitoria de extensão e conta que essa experiência a fez sentir-se muito respeitada e valorizada, ainda que existissem alguns desafios. “Dentro da universidade, não senti qualquer dificuldade de lidar com as pessoas, mas, fora da instituição, ainda mais sendo uma mulher que ocupava um cargo que exigia visibilidade, havia momentos, em conversas com os empresários, em que eu percebia, por um lado, admiração e, por outro: ‘Bem, o que esta mulher está fazendo aqui?’ Não era verbalizado, mas eu senti isso”, relata.
Para a professora Roseli Balestra, alguns homens falam de forma diferente com uma mulher e com um homem em posição de liderança. “São algumas coisas de comportamento individual. Eu fui do Colegiado da Engenharia Mecânica. Uma vez, terminando uma reunião, um colega de trabalho me falou algumas coisas desagradáveis. Mas ele não procurou outro professor que era da mesma área e também fazia parte do Colegiado para falar as mesmas coisas. Talvez isso tenha acontecido por eu ser mulher. Se ele tivesse dito o que ele me disse para o outro colega, talvez tivesse até apanhado”, comenta.
Entre os desafios a serem enfrentados pelas mulheres que ocupam cargos de liderança, está a preocupação com o trabalho doméstico. A necessidade de cuidar da família e da casa pode espantar as mulheres de assumirem cargos que as obriguem a passar mais tempo no trabalho. “Eu tenho duas crianças, então tenho o horário dedicado ao meu trabalho bastante restrito. Se eu ficar assumindo muitos cargos, não vou ter meu tempo para a família”, conta a professora Roseli.
Os filhos de Vera Lúcia Meneghini Vale, a pró-reitora de administração, já são crescidos, não moram mais com ela. Ainda assim, antes de aceitar o cargo na Pró-reitoria de Administração, surgiu a pergunta: se ela passasse tanto tempo na universidade, quem cuidaria dos afazeres do lar?
“Quando fui assumir o cargo, conversei na minha casa. Conversei com meu marido e pedi a ele compreensão, e ele deu toda a compreensão do mundo. Mas não é fácil, porque nós mesmas, como mulheres, nos cobramos com relação a isso, de dar conta 100% como era antes. Se fosse ele que tivesse recebido o convite, ele ficaria tranquilo, porque era eu quem cuidava das tarefas da casa”,comenta a pró-reitora.
Para quem tem filhos pequenos, a situação é ainda mais difícil. De acordo com o vice-reitor, muitas professoras desistem dos cargos que ocupam quando ficam grávidas. “Uma conduta muito comum para as mulheres que estão no Conselho Universitário, em chefias de departamento ou coordenadorias de curso, é pedir exoneração do cargo. Eu tenho falado com elas para não fazerem isso, porque ser mãe, como ser pai, é um direito. O pai não pede exoneração quando a esposa engravida. Às vezes, a maternidade é entendida como algo que possa atrapalhar o processo de gestão, e isso não é verdade. Temos que ter essa mudança de cultura na casa ”, diz Marcelo.
O futuro
Se a mudança é necessária, também é preciso encontrar maneiras para fazê-la acontecer. Para o vice-reitor, o caminho é não deixar a identidade da universidade morrer. “A universidade deveria romper com tabus. A partir do momento que ela começar a se dobrar aos tabus, não faz nem sentido ter universidade”, opina.
A universidade é, certamente, um lugar melhor do que o mundo do lado de fora. Dentro de seus muros, há igualdade salarial, o desrespeito se mostra menos presente, mas ainda falta muito para que seja um paraíso. “Aqui ainda é um espaço mais confortável, onde as pessoas se questionam mais. Só que não é em qualquer contexto que esse debate se dá dentro da própria universidade pública. A universidade tem um cenário muito mais favorável que a sociedade, mas a gente ainda precisa avançar muito. Não podemos descansar”, conclui a professora Isabela Queiroz.
Coordenação e edição/Mulheres na Universidade: Janaina Barcelos
Editoração e artes/Mulheres na Universidade: Rafael Senna, Clara Rita e Agnes Monteiro
Texto Original: mulheresnauniversidade.wordpress.com