“Mulheres de prosas e versos”: Adriane Garcia fala sobre seu livro e discute o espaço feminino na literatura
A poeta participou da 5ª Feira Literária Internacional de Tiradentes, que visou homenagear escritoras ilustres mineiras
Por Lídia Oliveira e Dirceu Vieira
Durante a FLITI, que ocorreu entre os dias 09 e 13 de abril, a escritora Adriane Garcia concedeu uma entrevista exclusiva à VAN. A autora de Belo Horizonte tem oito livros publicados, entre eles, “Estive no fim do mundo e me lembrei de você”, sobre o qual apresentou uma mesa no evento literário. Sua carreira é marcada pela publicação de poemas e por uma abordagem crítica diante dos problemas sociais contemporâneos. Confira abaixo algumas curiosidades e percepções da homenageada e de seu trabalho, boa leitura!

Lídia Oliveira: Adriane, muito obrigada pela disponibilidade em aceitar nosso convite para a entrevista. Você tem uma vasta produção de livros, inclusive traduzidos para o inglês e o espanhol, em algumas revistas. Você é arte-educadora, atriz, co-curadora de eventos literários. Então, sua vida é perpassada por esse movimento de encontros e de relação artística com diferentes linguagens. Eu queria que você falasse sobre a importância de, em um país como o nosso, fazer a manutenção de espaços de escuta e de diálogo, como a literatura.
Adriane Garcia: Lídia, muito obrigada pelo convite e por essa pergunta, especialmente. Eu sempre acho, desde que eu comecei a publicar e a ter alguma visibilidade, eu sempre achei muito importante a gente ocupar. Até porque, eu começo a publicar num contexto de mulheres publicando mais, mulheres começando a aparecer mais, nesse movimento da literatura escrita por mulheres tomar mais corpo, tomar mais visibilidade. Então, eu começo a publicar com uma consciência da questão da ocupação do espaço. Já teve vezes de eu receber algum convite e pensar de não querer, mas, ao mesmo tempo, pensar que eu deveria aceitar para ocupar esse espaço como escritora e como mulher que escreve. Por exemplo, nos espaços de curadoria, eu sempre gosto muito porque é a minha oportunidade de colocar mulheres. Sempre fiz isso nas minhas curadorias, sempre faço isso. E acho que é um modo de ajudar no equilíbrio das coisas.
LO: Você havia comentado sobre o mercado editorial. Enquanto curadora, você acha essencial hoje, ainda, essa busca por espaço, no sentido de possibilitar que mais vozes femininas estejam em evidência? Você acha que ainda há esse desequilíbrio?
AG: Olha, eu acho que é um momento bom para essa escrita, um momento em que as mulheres vêm aparecendo muito. Existe uma reclamação quase geral de homens brancos, héteros, reclamando por esse espaço antigo em que só eles frequentavam. Naquela época, não havia nenhuma reclamação. Eu noto, hoje, ouço isso de muitos escritores. E acho que é tudo muito novo, a questão do espaço é muito nova. Eu não acho que isso é um direito adquirido. Quando se trata de mulheres, nós sabemos que não existem direitos adquiridos. Sempre que a coisa piora politicamente, culturalmente, novamente aquilo que foi conquistado pelas mulheres que retroage primeiro. Na verdade, a gente tem que estar sempre buscando por esse espaço e zelando pelo espaço alcançado, porque, se a gente relaxa, é óbvio que a coisa volta ao que era.
LO: Você fala sobre essa necessidade de se manter sempre vigilante em relação aos espaços das mulheres. A FLITI, este ano, tem homenageado as escritoras mineiras. É uma feira que tem um alcance nacional e internacional significativo para a nossa cultura. Como você enxerga a poesia mineira e a dimensão dessa homenagem, principalmente, por você ser parte dela?
AG: Bom, eu acho muito bacana, gostei muito quando percebi que a FLITI teria esse centro de homenagem, das mulheres escritoras mineiras. Eu gosto sempre de fazer um adendo quando se fala “escrita mineira”, “literatura mineira” ou “poesia mineira”, porque eu não acredito que isso exista. Não acho que a gente pegue um texto e, se a gente não souber quem o escreveu, a gente diga “Isso é uma literatura mineira”. Uma poesia mineira, o que é? Eu não sei. Eu não faço literatura mineira, eu sou uma escritora, nascida em Minas Gerais, que faz literatura. Obviamente, ser mineira e estar nessa cultura que é Minas e nas influências que se dão em Minas perpassam a minha obra, como isso vai perpassar a obra de qualquer autor nascido em qualquer lugar. Mas eu achei essa homenagem muito bacana, no sentido de que traz esse nome: “escritoras mineiras”. Nós temos escritoras fabulosas em Minas Gerais, temos grandes nomes, inclusive canônicos da literatura brasileira, por exemplo, Carolina Maria de Jesus, Adélia Prado. E temos muitas poetas trabalhando na cena literária contemporânea. Eu poderia citar 20, 30 nomes, porque é uma cena muito movimentada da poesia.
LO: Eu quero falar um pouco sobre o seu livro “Estive no fim do mundo e me lembrei de você”, que é o tema da sua mesa na FLITI. Você traz um eu-lírico que olha a Terra, por vezes, de cima, por vezes, por dentro, como no poema “A ursa maior”. A sua inspiração foi o documentário “Nosso planeta” e a recorrência da convivência interespécie é bem marcante nos textos. A minha pergunta é: é possível adiar mais um fim do mundo?
AG: Pois é, essa pergunta é uma grande angústia porque ela quase já vem com uma resposta. É muito difícil adiar o fim do mundo. Nosso Ailton Krenak está lá, falando sobre adiar o fim do mundo. Os governantes não escutam, porque, quando você fala diante de grandes autoridades, autoridades mundiais, aquelas que podem fazer a coisa no nível macro e elas não fazem, é desesperador. Você jogar na mão do cidadão comum a responsabilidade de salvar o planeta, e a empresa não ser responsabilizada, é muito absurdo. É uma série de medidas que só teria jeito se elas acontecessem em nível estatal. Nós estamos diante de uma defasagem política mesmo, porque é preciso que os Estados, como organismos, façam leis duras, reais, não para o cidadão comum somente, mas que abranjam os grandes, os multibilionários. São eles realmente que, em grande número, danificam o planeta. São coisas que não estão em nossas mãos pequenas.
LO: Adriane, você é uma poeta muito atenta e forte quando pensamos as questões político-sociais do Brasil. Nos poemas “Vidro”, “Arquitetura hostil” e “Grande queijo suíço”, percebo essa leitura com mais sensibilidade. Você poderia comentar como a engrenagem capitalista se choca com as questões ambientais que aparecem no livro?
AG: Me parece muito claro e, a muitas pessoas sensatas, que nós temos hoje uma urgência de cuidar deste planeta como nunca cuidamos. Essas questões são urgentes: o calor vem aumentando desmedidamente, as geleiras estão derretendo, as estações já não obedecem mais ao mesmo ritmo, as enchentes estão aumentando vigorosamente, em lugares que nunca teve antes, há desertificação pelo mundo, há incêndios inexplicáveis. Cuidar desse planeta é cuidar de nós. Nós estamos tão desequilibrados, que esses poemas que você aponta são os poemas que puxam esse livro para o humano porque é um livro sobre meio ambiente. E o ser humano está sempre achando que está fora disso. Ele acha “sou eu e o meio ambiente. Eu vou salvar o meio ambiente”. Você não vai salvar o meio ambiente, você é o meio ambiente também. (…) Esse poema, “O queijo suíço”, ele é de uma cena que sempre me comove muito, que é das pessoas miseráveis nos sinais e, ao mesmo tempo, eu quis dar uma imagem bonita para isso. O “arquitetura hostil”, além de a gente ter miseráveis que não têm lugar para deitar, ainda há alguns babacas que colocam pedregulhos, cacos de vidro, pontas de lança para que aquele morador, aquela pessoa em situação de rua não tenha nem onde deitar na rua também. O que se quer fazer com essa pessoa? É horrível. (…) Então, eu quis nesse livro trazer que interespécie é com a gente. Interespécie é com a Terra. Esse livro foi muito doloroso para mim escrevê-lo. Durante a época em que eu estava escrevendo, houve muitas queimadas no Mato Grosso, no Pantanal e a fumaça desceu para Belo Horizonte. Lá, de onde eu morava, eu via essa fumaça e ficou escuro o céu por dias, parecia o apocalipse.
LO: Vou encaminhando para o final, então, Adriane. O poema “Antropoceno” foi um dos primeiros com os quais eu tive contato, pelas suas redes sociais, e me lembro de ficar muito comovida com a imagem e com o texto. O verso “fica parecendo que eu não compreendo que nós caímos quando a morsa cai” diz muito da proposta do livro sobre o conviver, sobre o fato de sermos bicho também. Por isso, qual a urgência de debater as questões socioambientais dentro da poesia contemporânea?
AG: Este sistema que danifica este planeta e, neste momento, este sistema se chama capitalismo, então é dele que falo, este sistema só sobrevive da ruína deste planeta. Ele quer produzir e aumentar a produção. Agora, vai ter aqui no Brasil a COP30; em plena COP30, cogita-se – no governo Lula, governo em que eu votei, votei com Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente – cogitar poço de petróleo na Amazônia, este governo?! Vá me desculpar, para mim é inadmissível. Se fosse em outro governo, seria totalmente inadmissível. Porque também não tenho suportado muito esse “dois pesos, duas moedas”. Coisas que no outro governo que passou, abjeto, não suportaríamos. Há certas coisas que são inegociáveis. Meio ambiente, a essa altura do campeonato, é inegociável, ainda mais num suposto governo de esquerda. Então, o socioeconômico perpassa tudo, porque a destruição do planeta está ligada ao lucro. O lucro para os grandes capitalistas, que exploram a classe trabalhadora, que não tem tempo para olhar suas crianças e muito menos pensar em meio ambiente. A questão é socioambiental mesmo. Passa pelo modo como nos tratamos uns aos outros. Passa pelo modo como usufruímos das mercadorias que o sistema produz. Trata da questão de eu me conscientizar. Como eu vou falar para uma pessoa sobre consumismo quando metade da população mal consome? A culpa é do grande consumismo de quem? São questões que têm que ser avaliadas na sua complexidade. Temos que sair desse simplismo. Temos que ter coragem de dar nome às coisas. Temos que ter coragem de enfrentar nossos próprios governos para que, se eles estão indo em uma linha errada, eles voltem para aquilo para o qual receberam nossa confiança. (..) A gente tem que escolher aonde a gente quer chegar, não escolher aqueles que não nos fazem chegar. Então, esse livro foi um livro sofrido e foi um livro que escrevi com muito amor. Este poema “Antropoceno”, particularmente, foi um poema que eu chorei muito escrevendo, eu escrevi chorando, porque a cena das morsas subindo montanhas é avassaladora, é terrível.