Analogia da música “Quase Lá” com o peso da excelência preta
Por Ana Luiza Fagundes
A música “Quase Lá” (Almost There, no título original em inglês) é destaque no filme de 2009, “A Princesa e o Sapo”. A canção foi interpretada por Anika Noni Rose como a personagem Tiana, nos EUA, e por Kacau Gomes na versão dublada brasileira. Durante a sequência da música, a animação se desloca para o mesmo estilo de arte usado na imagem do restaurante dos sonhos de Tiana. A música foi composta por Randy Newman e foi nomeada para o Oscar de Melhor Canção, apesar da baixa bilheteria devido o longa ter sido o último filme 2D da empresa de filmes animados.
Mas, afinal, o que há de fato com a tão repetida frase “Eu estou quase lá”?
No início do longa, Tiana é mostrada ainda como uma criança, brincando com sua melhor amiga Charlotte. A amizade surgiu por sua mãe ser a costureira dos vestidos de princesa da pequena loira. Ao se despedirem e irem para casa, percebemos uma mudança de cenário. As casas luxuosas e bem iluminadas dos grandes bairros da cidade de Nova Orleans começam a sumir, em decorrência do surgimento de pequenas casas, quase sem iluminação e semelhantes a quartos de despejo, que mal abrigam os moradores. Nesta noite, Tiana faz uma sopa simples com os restos que havia em casa. Ao experimentar, o pai da jovem, e futura princesa, chega à conclusão que sua filha tem um dom e convida a todos da comunidade para provar a sopa, que estava em um grande caldeirão.
Ao ser colocada na cama para dormir, seu pai James lhe mostra uma foto de um antigo sonho que ele tinha, mas que para alimentar a família, teve que abdicar e ir para outras vertentes. Este sonho era abrir um restaurante. Ao perceber o desejo e talento da filha, James promete que algum dia irá realizá-lo e escreve na imagem o futuro nome do estabelecimento: “Tiana’s Palace”. Tiana diz ao pai que se eles desejarem muito, a estrela mais brilhante do céu irá realizar o desejo deles, porém ele enfatiza que aquela estrelinha somente faz metade do serviço. Para realmente conseguir, ela deverá trabalhar muito e desejar do fundo do coração.
Anos se passam, James falece, restando apenas Tiana e a mãe, Eudora. Agora garçonete, a filha trabalha incansavelmente para realizar o seu sonho e o do seu pai, deixando de lado as diversões, os amores, dobrando seus horários, sabendo que cada moeda conta e que um dia valerá a pena. Com a chegada do Príncipe Naveen, da Maldonia, ela consegue o dinheiro necessário para finalmente realizar seu sonho, deixando todos desacreditados.
Nossa analogia começa aqui, porque antes, precisávamos do contexto da vida de Tiana. Ao mostrar o local para sua mãe, ela está eufórica, sonhadora e, tal como o pai, já imagina onde cada coisa irá ficar. Eudora questiona e briga com a filha sobre ela querer recompensar todo o seu esforço e o de seu pai, dizendo que ele pode não ter conseguido tudo que desejava, mas ele tinha amor. A música se inicia a partir daí.
“Estou sem tempo para distrações, preciso trabalhar. Esta cidade, na verdade, faz a gente se acomodar, mas sei muito bem pra onde estou indo e sinto que qualquer dia vou chegar.”
O peso da excelência preta (principalmente das mulheres), começa desde que vemos os sacrifícios que nossos pais e antepassados fizeram por eles (as). Para uma mulher negra, excelência não é meta, é nota de corte para tudo. O esforço, mesmo que quebre nossos ossos, é vital para “sermos alguém” e conseguirmos alcançar nossas metas. Já dizia a jornalista Cris Guterres, em sua matéria sobre ser uma “obrigação” das pessoas pretas como uma cota, para atingir nossos objetivos. Segundo dados do Ministério da Saúde, o índice de depressão e ansiedade entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior que entre os brancos, em relação a vida profissional e aspectos básicos da vida cotidiana.
“Estou quase lá, quase lá, dizem por aí que sou doida, mas deixo pra lá. Lutas e problemas eu já tive, mas agora não vou desistir, porque eu estou quase lá. Trabalhei bastante até aqui, agora as coisas vão fluir, só preciso insistir mais um pouco e conseguir”.
Este é o pensamento da maior parte, se não toda a população preta, ao “chegarem Lá”. Ele se interliga a um discurso meritocrático perigoso, segundo as palavras da escritora-ativista Conceição Evaristo: “Esse discurso (que também é o discurso de vida dela) é perigoso (…) Ah, mas se você batalhar, se você se sacrificar…”. Qual o preço da excelência preta? Ela está interligada ao racismo estrutural, e essa estrutura mata mentalmente e fisicamente jovens pretos, sejam das comunidades, ou centros urbanos.
Evidentemente, isso não significa que a luta deve ser paralisada, nossa excelência é marcada a cada passo que damos. Todavia, é necessário ser analisada para que não haja mais corpos pretos nas vielas desta luta. Que possamos atravessar rios, cuidar do nosso emocional e físico e permanecer vivos nas formas anteriormente citadas, pois um corpo preto no chão, significa que em algum momento aquele (a) jovem acreditou que estava quase lá.
Mas e você? Está quase lá?